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Rodrigo Otávio Mazieiro Wanis e Bruno Amorim Carpes

O negacionismo da impunidade

Causa espanto e indignação afirmar que o nosso sistema penal privilegia a prisão

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Rodrigo Otávio Mazieiro Wanis

Promotor de Justiça, é conselheiro do Instituto Não Aceito Corrupção e autor de “A Defesa da Sociedade contra os Atos de Improbidade Administrativa” (ed. D'Plácido)

Bruno Amorim Carpes

Promotor de Justiça, é membro da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais e autor de "O Mito do Encarceramento em Massa" (ed. E.D.A.)

Num país que sangra pela violência das ruas e pela corrupção dos gabinetes, nação que encarcera efetivamente, entre apenados do regime fechado e provisórios, 539.631 pessoas, de acordo com o Sisdepen (Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional) —e não "mais de 700 mil", como corriqueira e (in)convenientemente propalado—, falar em impunidade é mais que possível, é urgente e necessário!

A iminência de apreciação parlamentar da PEC 199/2019, que trata da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, nada mais é do que uma veemente manifestação democrática da vontade popular (57% da população em 2018, segundo pesquisa Datafolha) em sanar esse problema crônico do nosso sistema de Justiça, ressuscitado pelo Supremo Tribunal Federal em contrariedade à sua própria jurisprudência anteriormente consolidada.

De acordo com o Atlas da Violência 2021, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apenas no ano de 2019 foram contabilizados 45.503 homicídios no Brasil, crime pelo qual, conforme o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, apenas 30.827 pessoas encontram-se presas, incluindo prisão definitiva e provisória. Ampliando-se o espaço temporal, cerca de 800 mil homicídios foram registrados apenas entre 2000 e 2015 —dos quais, segundo dados da Enasp (Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública), nem 10% resultaram em denúncias. Consequentemente, é um verdadeiro escândalo atribuir à pena, e não à impunidade, o cenário caótico de violência em que ora vivemos.

Nesta mesma nação, que despencou novamente no ranking de 180 países do Índice de Percepção da Transparência Internacional de 2021 —da 94ª posição para a 96ª, com 38 pontos, mantendo-se abaixo da média global de 43 pontos e até dos países da América Latina e Caribe (41 pontos)—, apenas 483 agentes públicos e 680 particulares estão presos por crimes contra a administração pública. O exemplo mais eloquente e incidente é a corrupção, para o que a probabilidade de punição penal e civil é menor que 5%, e o Judiciário, historicamente, não consegue julgar nem a metade dos 70% dos processos estabelecidos pela meta 4 da Enasp/CNJ. Aqui, a impunidade vem sendo institucionalizada legalmente por reformas que beneficiam só quem pratica o ilícito.

Causa espanto e indignação a insistência de setores do mundo jurídico em afirmar que o nosso sistema penal atual privilegia a prisão. Desconsidera-se o fato de que apenas 2,69% das penas brasileiras estipulam regime inicial fechado. Ainda que o Fórum Nacional dos Juízes Criminais tenha apontado em levantamento que apenas 1,5% das ações penais utilizou a prisão preventiva, razão pela qual o Brasil figura em 112º lugar em número de presos provisórios, abaixo de países como Nova Zelândia, Austrália, Dinamarca, Suíça e Canadá, por exemplo.

Omite-se, ainda, que o sistema prisional assemelha-se a uma porta giratória de criminosos —isto é, criminosos indo e voltando (ou se mantendo foragidos) às custas de novas vítimas, vidas e patrimônios. Em outras palavras, os condenados criminalmente permanecem pouquíssimo tempo no sistema prisional, o que também promove a impunidade.

Em vez de bradar pela inutilidade da punição dos criminosos e que seus efeitos não se prestam a combater a corrupção (?), a sociedade brasileira anseia sim é pelo aumento da eficiência das instituições destinadas à investigação, persecução, aplicação e execução das leis sancionadoras, pelo que se promovam a justa punição dos culpados a absolvição dos inocentes, com o mínimo de segurança jurídica há tempos ignorada, e que sejam levadas a efeito as mudanças necessárias pelos meios legitimamente democráticos, como a referida PEC, mas não por decisões arbitrárias que contrariam a lógica, as provas e a vontade popular.

Por fim, o que não se concebe é que operadores do direito coloquem suas idiossincrasias oportunistas acima da análise escorreita dos números que estão à sua disposição em favor de narrativas sem qualquer amparo na realidade do país, que já fora condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em dez oportunidades em razão de sua omissão em efetivar o direito das vítimas de crimes, não dos criminosos. É chegada a hora do fim da impunidade e de seu negacionismo!

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