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Saúde e ciência sob risco

Politização de órgão técnico que avaliza tratamentos afeta independência e preocupa o SUS

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Recentemente foi noticiada a possibilidade de substituição da diretora do Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias e Inovação em Saúde, que também preside a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). Segundo a imprensa, a sua exoneração foi solicitada por Hélio Angotti, secretário de Ciência, Tecnologia, Gestão e Insumos Estratégicos (SCTIE) e está sendo cogitada em razão de a diretora ser contrária ao chamado "kit Covid".

O órgão, vinculado ao Ministério da Saúde, é responsável pela análise dos tratamentos que serão oferecidos pelo SUS. Seu trabalho consiste basicamente em avaliar as evidências científicas existentes sobre um determinado tratamento, o seu custo-efetividade e o impacto orçamentário que a sua oferta provocará aos cofres públicos. Significa dizer que a sua atuação é técnica. Ao final do processo, a Conitec recomenda ou não a introdução da tecnologia no SUS, cabendo ao secretário da SCTIE decidir se a população terá ou não acesso a ela.

Ueslei Marcelino - 5.jun.2020/Reuters
Profissional de saúde com embalagens de sulfato de hidroxicloroquina, azitromicina e difosfato de cloroquina - REUTERS

O que está em jogo com a troca é a independência da Conitec. Órgãos cuja conduta deve ser pautada pela técnica precisam agir de acordo com ela. Na análise das evidências científicas dos tratamentos de saúde que se pretende que sejam oferecidos a toda a população, o único fator limitante de sua atuação deve ser a própria ciência. Nada mais. E, na situação específica do kit Covid, o relatório da Conitec, que não recomendou a sua incorporação, seguiu o que os estudos existentes sobre a cloroquina, a hidroxicloroquina e a azitromicina preceituam.

Não há dinheiro sobrando no SUS para se gastar com tratamentos cuja ineficácia já foi comprovada. Aliás, isso é vedado pela lei que instituiu a Conitec. Logo, a atuação do órgão e de sua presidente, além de ter seguido a ciência, também se pautou na legalidade. Não há motivos técnicos para a sua substituição.

Por outro lado, a troca na coordenação da Conitec acabará por transformar a comissão em um órgão político na medida que se deixa claro, pelo chefe do Ministério da Saúde, que o que importa não é a ciência, nem o interesse do cidadão de ter os recursos do SUS bem aproveitados, mas sim um interesse político para fazer prevalecer um discurso que já foi amplamente refutado no mundo todo.

A falta de observância estrita da ciência também pode propiciar uma maior interferência da indústria farmacêutica no processo de decisão da Conitec para a aprovação de outros medicamentos ineficazes. Com isso, a já estremecida confiança do cidadão no SUS ficará ainda mais abalada. É necessário fortalecer a Conitec, não enfraquecê-la.

Outro prejuízo que já se pode antever, caso haja a politização da Conitec, é um aumento da judicialização da saúde. O Poder Judiciário recebe há algumas décadas processos em que se pedem tratamentos que não são oferecidos pelo SUS. Muitas vezes essa judicialização possui um grave efeito adverso: ela desestrutura a organização do SUS, comprometendo as políticas públicas instituídas.

Parte do orçamento do SUS é direcionada para o cumprimento das ordens judiciais. O juiz, quando decide esses processos, analisa (ou deveria analisar) o que a Conitec fez, se a tecnologia pleiteada já tiver sido submetida ao órgão. Quanto mais técnica for a Conitec, e quanto mais fundamentado for o seu relatório, maiores serão as chances de o juiz aceitar o que ela recomendou e manter hígida a política pública. É fácil perceber que uma Conitec marcada pela política não será respeitada pelos juízes.

Por tudo isso, fica claro que os cargos da Conitec não podem ser distribuídos com base em favoritismo político. Também já é hora de evoluirmos para criarmos mecanismos legais que assegurem a independência da comissão, como ocorre com as agências reguladoras. A sua criação, em 2011, representou um grande avanço para o SUS, mas o momento demonstra que precisamos avançar mais.

Prova disso é que na última sexta-feira (21) foram publicadas as portarias SCTIE/MS nº 01, 02, 03 e 04, que não aprovaram várias das recomendações da Conitec relacionadas ao tratamento da Covid-19, inclusive autorizando, com isso, o uso do kit Covid pelo SUS. Essa postura da SCTIE de não seguir as recomendações técnicas feitas pela Conitec é inédita e confirma a ideia de que o enfraquecimento do órgão criado e capacitado justamente para a análise de evidências científicas confiáveis parece ser deliberado.

Ana Carolina Morozowski
Juíza federal

Bruno Henrique Silva Santos
Juiz federal

Fabiano de Moraes
Procurador da República

Luciana da Veiga Oliveira
Juíza Federal

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