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Marco Antonio Coutinho Jorge

Um engenhoso estímulo à impostura

'Democratizar a psicanálise' desvia o foco de que curso de graduação é pernicioso engodo

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Marco Antonio Coutinho Jorge

Médico psiquiatra e professor do Instituto de Psicologia da Uerj

Em sua resposta a meu artigo publicado na Folha ("Bacharelado em psicanálise é aberração", 12/1), Érico Andrade ("Democratizar a psicanálise", 17/1) revelou desconhecer por completo as condições atuais da formação e da prática psicanalíticas. Suas colocações negam uma realidade que existe há décadas: a formação e o tratamento psicanalíticos não estão de modo algum dirigidos exclusivamente para a elite econômica.

Sua afirmação de que a democratização da psicanálise "só ocorre nos corredores das universidades onde a psicanálise é usada como teoria social em diferentes domínios das humanidades" desconsidera as conquistas que os psicanalistas empreenderam em nosso país e desinforma as pessoas quanto às possibilidades existentes de busca de tratamento analítico. O autor prefere fazer uma ironia ("a clínica social que, aliás, quase nunca existe") com algo que é muito sério e precisa ser divulgado na sociedade: todas —absolutamente todas— as instituições de psicanálise que oferecem formação mantêm, sim, uma clínica social bastante ativa que atende pacientes de diferentes camadas sociais.

O desserviço não para por aí: ao contrário do que ele brada equivocadamente referindo-se ao preço cobrado pelos analistas, o valor das sessões de análise é frequentemente estabelecido em acordo feito com cada um dos pacientes, pelo próprio fato de que a análise é um tratamento longo, ao qual são dedicadas muitas horas de trabalho, e em que a própria frequência de sessões necessária para cada paciente é avaliada segundo a estrita singularidade de cada caso.

Além disso, dando existência concreta ao desejo de Freud, que desde sempre sustentou o projeto de oferecer tratamento analítico às classes menos favorecidas (cf. a importante obra de Elizabeth Ann Danto, "As Clínicas Públicas de Freud: Psicanálise e Justiça social, 1918-1938"), os psicanalistas nunca estiveram tão presentes como hoje nos mais variados contextos de atendimento popular —em hospitais e unidades de saúde da rede pública, e até mesmo em atendimentos voltados para a população de rua. Não reconhecer isso é perpetuar uma visão ultrapassada de que a psicanálise é elitista.

Mas o mais nefasto em sua réplica é que ele desvia o foco do grave problema que apontei em meu breve artigo: a recente criação de um curso de graduação em psicanálise por uma universidade privada, que se arroga o direito de dar condições a seus graduandos para exercer a clínica psicanalítica, não possui como o autor supõe mérito algum, pois trata-se muito simplesmente de um engenhoso estímulo à impostura. Atenção: o que importa entender é que oferecer formação enganosa de maneira nenhuma visa "democratizar a formação", mas sim destruir as bases sobre as quais ela se constrói.

Ao apontar em seu manifesto recém-divulgado o pernicioso engodo inerente à proposta dessa universidade de oferecer graduação em psicanálise, o Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, que reúne as diversas instituições psicanalíticas de nosso país que oferecem formação adequada, fez valer sua reconhecida autoridade em relação ao conhecimento de uma disciplina complexa, que exige uma formação rigorosa para ser alçada a uma prática legítima.

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