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Mari Stockler, Guilherme Varella e Rodrigo de Almeida

A destruição da cultura como agenda eleitoral

Artistas são alvo, e Lei Rouanet potente projétil

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Mari Stockler

Gestora cultural e coordenadora do 342Artes

Guilherme Varella

Advogado e gestor cultural, é ex-secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (jan.2015 a mai.2016, governo Dilma); diretor do Instituto Cultura e Democracia e consultor do Mobile

Rodrigo de Almeida

Jornalista e cientista político, é consultor de comunicação e política; ex-assessor de comunicação do Ministério da Fazenda e ex-secretário de Imprensa da Presidência da República (mar.2015 a mai.2016, governo Dilma)

A lista é extensa e perversa —ou surreal. Desde a última eleição presidencial, a cepa autoritária que dirige a Cultura na Esplanada dos Ministérios escolheu o setor cultural e os artistas como alvos preferenciais.

Retórica e atos se combinam numa soma de fake news, desinformação, medidas infralegais autoritárias e personagens escolhidos para sofrerem retaliações. Instituições e mecanismos públicos da cultura se tornaram dispositivos de perseguição e plataformas de insuflamento ideológico. A Lei Rouanet está entre os principais.

Recentemente, o governo oficializou, por meio de uma nova instrução normativa, uma série de mudanças na lei, formalizando o que vinha sendo anunciado desde o início do ano. A intenção é evidente: intimidar os artistas, prometer ordem na casa, restringir e direcionar os recursos. A estratégia inclui ataques ao segmento artístico, promovidos pelas próprias autoridades públicas, sobretudo pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), pelo ator secretário da Cultura e pelo policial militar que gere a renúncia fiscal.

Está em curso uma operação burocrático-administrativa de desmonte e perseguição. Pesquisa da Fundação Getulio Vargas que analisou a atuação institucional do governo concluiu que ele realiza o "infralegalismo autoritário" —série de instrumentos administrativos cuja expedição independe dos demais Poderes e a vigência se dá abaixo das normas legais. É o que ocorre com a Lei Rouanet.

Muitas dessas ações estão entre os casos mapeados pelo Mobile (Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística), criado para monitorar, denunciar e trabalhar contra episódios de censura, ataques à cultura e ameaças à liberdade de expressão artística.

Esse quadro se torna mais grave quando a cultura tenta se reerguer de sequelas da pandemia. Uma recuperação difícil, dada a emergência das novas variantes. Em 2021, houve uma redução de mais de 20% nos postos de trabalho no setor cultural, segundo o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural.

Ao lado da Fundação Palmares e do Iphan, a Lei Rouanet tem sido o símbolo dessa pregação anticultura, sintetizada na chula expressão do presidente: "Acabou a teta gorda". É a crítica de que artistas só teriam êxito por obra e graça da Lei Rouanet. Nada mais falso e deturpador. A lei tem distorções que precisam ser corrigidas. Gilberto Gil e Juca Ferreira, quando ministros, chegaram a propor uma reforma buscando solucionar problemas de concentração regional e de linguagens, distorções inerentes a um mecanismo de mercado. Mas é justamente por ter esta natureza que o incentivo fiscal cumpre um importante papel de dinamização das cadeias econômicas da cultura e de estímulo à indústria cultural —setor que hoje emprega quase 5 milhões de pessoas.

Não se trata de uns poucos artistas ou celebridades, mas sim um universo amplo de produtoras e produtores, profissionais de teatro, artes visuais, cinema, música, fotografia, artesanato, museus e patrimônio, além de trabalhadores de apoio.

Os porta-vozes do ódio à cultura também fingem ignorar que benefícios tributários não se limitam ao setor cultural, mas sim abrangem amplos setores da economia. A verdade é que não querem consertar a Lei Rouanet, nem distribuir melhor os recursos. Nunca quiseram. Seu espírito armamentista quer os artistas como alvo e vê a Rouanet como um potente projétil. É a lógica de quem abomina o pensamento crítico produzido pela cultura e, por isso, elegeu-a sua maior inimiga pública.

Combatê-la é também um cálculo eleitoreiro. Em outubro, os agentes do desmonte disputarão o voto de eleitores. Ao escolherem os artistas, a cultura e a Lei Rouanet como agenda política de destruição, miram a própria claque: uma caixa de ressonância reacionária e ideológica, que despreza a complexidade cultural brasileira e se entorpece da atmosfera de desinformação e belicismo criada contra os artistas.

As eleições dirão se essa estratégia funcionará. Certeza mesmo é da grandeza da cultura brasileira e de sua resiliência. Resistindo ao vendaval obscuro e autoritário, junto com a democracia, a cultura sobreviverá.

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