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Júlia Ferraz e Thiago Acca

A permanência dos desastres

Vítimas também devem ter voz no processo de reassentamento involuntário

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Júlia Ferraz

Pesquisadora do Centro de Direitos Humanos e Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV CeDHE) e doutoranda em direito (USP)

Thiago Acca

Professor da FGV Direito SP e coordenador de projetos do FGV CeDHE

Imediatamente após a ocorrência de desastres há, em geral, um aumento da mobilização social e comoção pública: importantes campanhas de arrecadação de alimentos, itens de higiene e vestuário são promovidas, além de repercussões na mídia nacional. Não foi diferente quando municípios da Bahia e de Minas Gerais sofreram, em razão das enchentes, impactos sociais, econômicos e ambientais.

O tempo, porém, é cruel. As semanas passam, e rapidamente muitos se esquecem de que consequências ainda se farão presentes por longo período na vida de comunidades inteiras. Os holofotes saem, mas o desastre para aquelas pessoas permanece.

Diante do desafio de reconstruir o modo de vida das pessoas atingidas, uma pergunta legítima é: afinal, o que podemos fazer? Bem, o problema pode ser visto por diferentes vieses —um deles, certamente, é jurídico. Nesse caso, não estamos apenas tratando do que podemos, mas também do que devemos fazer.

As pessoas atingidas por desastres gozam de direitos que precisam ser efetivados. Dentre esses, o direito à moradia está invariavelmente presente.

Segundo o direito internacional, o deslocamento forçado, ou seja, a remoção involuntária de pessoas de suas casas e territórios, é uma grave violação de direitos humanos. Nos casos em que ele não pode ser evitado, a forma reconhecidamente mais adequada de reparar os danos é o reassentamento. O processo, entretanto, não deve contar simplesmente com a boa vontade do Estado ou de empresas envolvidas.

O ordenamento jurídico impõe regras e diretrizes de como esse processo deve ser conduzido. Além do direito à moradia ser garantido pela própria Constituição (art. 6º), há um conjunto de diretrizes e normativas da ONU, como o Comentário Geral nº 4 e nº 7. Elas estabelecem importantes regras para a condução do reassentamento involuntário.

Em primeiro lugar, as pessoas deslocadas devem ser ouvidas. Por mais evidente que essa afirmação possa parecer, em pesquisas desenvolvidas pelo FGV CeDHE (Centro de Direitos Humanos e Empresas da Fundação Getulio Vargas) identificamos que aos deslocados ou não é oferecida uma participação adequada ou não é garantida qualquer forma de participação. Simplesmente são excluídos do processo de discussão e decisão sobre como deve ser reconstruída sua comunidade. Por isso, logo após o desastre se deve criar uma instância de participação que possa representar adequadamente os interesses coletivos. E todo apoio técnico e financeiro deve ser aportado para que a voz das pessoas atingidas seja realmente ouvida e influencie diretamente as escolhas.

Em segundo lugar, é preciso atentar para o fato de que as comunidades deslocadas não são um todo unitário. Há uma tendência de visualizá-las dessa forma. A princípio pode parecer justo dar o mesmo tratamento para todas as pessoas atingidas. Ocorre que em uma comunidade há diversos grupos sociais vulneráveis que experienciam violações de direitos de formas distintas e até mesmo mais gravosas, como crianças e adolescentes, mulheres, idosos e pessoas com deficiência.

Assim, por exemplo, abrigos temporários e moradias definitivas devem ser acessíveis às pessoas com dificuldade de locomoção. Mulheres devem ter iguais condições de participar dos processos deliberativos, o que envolve, dentre outros pontos, a implantação de serviços de apoio, como creches, nos locais de reunião. Elas também devem ser reconhecidas como "chefes de família" e receber o título da propriedade. Crianças e adolescentes devem ser matriculados em escolas e não devem ter seu aprendizado prejudicado pelo deslocamento.

Esses são apenas alguns pontos de atenção que devem ser levados em consideração no processo de reassentamento involuntário. Apenas com o protagonismo de atingidas e atingidos é possível pensar em reconstrução pós-desastre. Somente por meio de seus saberes, fazeres e experiências que os caminhos para a efetiva recomposição dos modos de vida são encontrados. Não há respostas mágicas; contudo, a sociedade precisa tomar consciência de que as consequências de um desastre não são pontuais e totalmente solucionáveis com água e pão.

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