Descrição de chapéu
Marcelo Feijó de Mello

Covid longa e a atenção à saúde mental

SUS precisa se preparar para elevado acréscimo de portadores de transtornos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Marcelo Feijó de Mello

Médico psiquiatra, é professor pleno da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein e livre-docente da Escola Paulista de Medicina (Unifesp)

Após dois anos do início da pandemia de Covid-19, ainda lutamos contra a doença, agora com mais conhecimentos, medidas sanitárias e vacinas. As consequências psiquiátricas decorrentes da enfermidade, a chamada quarta onda das manifestações com repercussões na saúde mental, já estavam previstas.

Além das grandes repercussões emocionais e traumáticas advindas da doença, suas manifestações clínicas ultrapassam a fase aguda e são chamadas de Covid tardia ou Covid longa. O cérebro é um dos órgãos mais atacados pelo vírus, levando a reações imunológicas, inflamatórias e vasculares, que determinam quadros clínicos diversos —vão do coma e da confusão mental a dificuldades de concentração, atenção, memória, manifestações depressivas, ansiosas e estresse pós-traumático. Podem persistir por meses e anos se não tratados adequadamente.

Entre os mais de 27 milhões de brasileiros que sobreviveram à Covid, um número considerável apresenta alterações neuropsiquiátricas complexas, que se somarão à grande população de portadores de transtornos mentais existentes em nosso país. O SUS precisa urgentemente se preparar para esta ação mantendo os ganhos da reforma da assistência à saúde mental: garantia dos direitos humanos, tratamento na comunidade, multidisciplinaridade e visão ampla do adoecer.

A Rede de Atenção Psicossocial (Raps) se distanciou do sistema de saúde, apesar de tentativas como a realização de supervisões à atenção básica nos matriciamentos. A Raps é insuficiente para a realidade da saúde mental, saturando o sistema de saúde devido à alta prevalência dos transtornos mentais por falta de acesso aos casos de maior complexidade. A saturação se apresenta com o aumento de consultas na atenção básica para repetições de receitas de psicotrópicos, sem resolução dos casos graves e lotando serviços de emergência (sem equipes de saúde mental), internações e levando até ao suicídio —situações que poderiam ser evitadas. Somos o país com as maiores prevalências de transtornos de ansiedade e depressão do mundo; eis uma evidência concreta de que o sistema precisa ser aperfeiçoado.

A atenção básica consegue dar um bom atendimento para 70% a 80% das pessoas que apresentam condições mais simples. Contudo, uma parcela significativa, de 20% a 25%, apresenta condições mais complexas, que passam por crises e descompensações e que demandam cuidados especializados de uma equipe multiprofissional de saúde mental com maior resolutividade. São pessoas com depressões e ansiedades graves, transtornos de personalidade, assim como casos de surtos psicóticos, transtornos bipolares e dependências de drogas e álcool. ​

Desde o início da reforma, a Raps se estruturou fortemente para atender pacientes com quadros altamente complexos e crônicos e com muitas demandas psicossociais através dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Essa população representa entre 1% e 5% das pessoas acometidas por transtornos mentais. É um trabalho sério e intenso de reabilitação e ressocialização, com usuários muito diferentes dos pacientes com desorganizações e incapacitações temporárias em função de seus transtornos mentais. Os Caps não são locais preparados e adequados para essa grande demanda.

A Raps necessita urgentemente ser fortalecida com centros especializados em saúde mental (que são regulamentados), com uma ligação direta com a atenção básica. Esses centros seriam uma etapa da atenção à saúde, retornando o usuário, após a compensação do quadro, para a atenção básica, que será sempre a referência. Os centros têm capacidade para aplicar protocolos específicos multiprofissionais, num processo acompanhado por uma gestão desse percurso, garantindo a eficiência e as comunicações entre equipes e unidades.

Tais aquisições, além de diminuir custos, reduzirão em muito o sofrimento dos usuários e aliviarão a sobrecarga dos profissionais e do sistema. O cuidado com gestão permite tratar mais eficientemente, com menores custos econômicos e emocionais, reduzindo o enorme fardo que a pandemia trouxe, diminuindo suicídios e adoecimentos e permitindo a recuperação.

A complexidade da saúde deve estar acessível à população, através de uma implementação e gestão baseadas na ciência. Não existe saúde sem saúde mental.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.