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Gustavo Maultasch

Defender meu inimigo

Judeu e neto de sobreviventes do Holocausto, diplomata é favorável ao modelo americano de liberdade de expressão mais ampla no caso Monark

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Gustavo Maultasch

Diplomata e doutor em administração pública pela Universidade de Illinois - Chicago, foi network fellow do Centro de Ética de Harvard (2013-2014)

Muitos têm criticado a opinião do podcaster Monark (Bruno Aiub) sobre liberdade de expressão como se ela fosse uma monstruosidade, algo que não deveria ser sequer pensado, muito menos dito; onde já se viu alguém defender a liberdade de expressão para o nazismo?

Mas uma coisa é julgar o nazismo como uma ideologia desumana e repugnante, coisa que todos nós fazemos (e certamente eu também, como judeu e neto de sobreviventes dos campos de concentração do Holocausto). Outra coisa, bem diferente, é julgar que o governo deva deter a prerrogativa de patrulhar o discurso dos cidadãos e silenciar aqueles que proferem ideias proibidas.

Apresentador fuma maconha
O podcaster Monark (Bruno Aiub) - Reprodução/Youtube
  • Leia também aqui o contraponto de Bruno Salles Ribeiro a esta opinião


No tema da liberdade de expressão, uns adotam uma visão mais tutelada do debate público, como a do Brasil atual, em que se confere ao Estado o poder de regular temas permitidos e proibidos. Outros defendem, no entanto, uma visão mais livre do debate público, como a dos Estados Unidos, em que se conferem maior autonomia e liberdade ao cidadão para defender a ideologia que quiser, inclusive a do nazismo.

Nessa visão mais livre, com a qual eu estou de acordo, a liberdade de expressão é conferida a todo tipo de ideologia desde que elas não promovam incitação direta à violência ou façam ameaças reais de violência. O mero ativismo abstrato de uma possível violência futura, ou de uma ideologia supremacista, não basta para configurar a incitação direta à violência.

Essa visão aceita a liberdade do nazista não porque julgue suas ideias virtuosas; ela tolera essa liberdade porque acredita que a proibição seria contraproducente, pois tende a: produzir ressentimento e gerar mártires; jogar essas ideias para o submundo, onde sobrevivem sem questionamento; concentrar poder demais nas mãos do Estado, o que depois pode ser utilizado para censurar ideias legítimas de meros adversários políticos do governo; e acostumar a população à censura, à ideia de que não podemos pensar por si e de que o governo pode ditar o que podemos pensar e falar.

O caso clássico do tema é o da marcha nazista de Skokie. Em 1977, neonazistas tentaram realizar uma marcha em Skokie, uma pequena cidade localizada no subúrbio de Chicago (estado de Illinois, EUA), e onde grande parte da população era de sobreviventes do Holocausto. O governo de Skokie tentou proibir a marcha, mas juridicamente o caso era simples: com base na constituição americana, a liberdade de expressão tem uma proteção quase absoluta, sendo praticamente impossível proibir uma manifestação pacífica (ou seja, sem violência ou incitação direta à violência), ainda que o tema seja extremamente ofensivo.

Em seu livro "Defendendo meu Inimigo", Aryeh Neier (que também é judeu e foi diretor da União Americana pelas Liberdades Civis) afirma que apoiou a liberdade de expressão dos nazistas em Skokie precisamente "para poder derrotar nazistas. Defender o meu inimigo é a única maneira de proteger uma sociedade livre dos inimigos da liberdade" (p. 2). Regimes que se desviam gradualmente para o autoritarismo não iniciam sua escalada autoritária atacando os grupos mais afáveis e bem vistos pela população; isso geraria uma grande reação e assim frustraria o plano tirânico do governo. A defesa da liberdade e da democracia muitas vezes inicia-se, assim, pela defesa de princípio da liberdade dos nossos piores inimigos; e é isso o que a visão mais livre da liberdade de expressão busca honrar.

Pode-se criticar e discordar de Monark; mas uma visão mais ampla sobre a liberdade de expressão tem um histórico e uma filosofia que a credenciam a, pelo menos, ser respeitada e ter um lugar à mesa do debate público brasileiro.

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