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Bruno Mattos e Silva

Depois do calote público, o calote privado

Medida provisória beneficia devedores e prejudica seus credores

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Bruno Mattos e Silva

Consultor legislativo do Senado Federal e autor de ‘Compra de Imóveis' (ed. Atlas/GEN)

João Malandro deve dinheiro a José Coitado. João Malandro não paga a dívida, e José Coitado ingressa com ação judicial para obter o que lhe é de direito. João Malandro vende todos os seus bens e desaparece com o dinheiro. O que pode fazer José Coitado diante disso?

A espúria tentativa de João Malandro talvez não prejudique José Coitado, que poderá, ao fim do processo judicial, tentar penhorar os bens vendidos por João Malandro.

Essa é a situação atual, mas que o governo João Bolsonaro (PL) pretende agora alterar. Não para beneficiar José Coitado, mas sim João Malandro.

Mal a população brasileira havia engolido a malfadada PEC dos Precatórios, o governo Bolsonaro, não satisfeito, editou a medida provisória 1.085, de modo a beneficiar os devedores privados e prejudicar seus credores. Isso no apagar das luzes de 2021, depois do Natal e antes do Ano-Novo, de modo a minimizar a repercussão de uma medida claramente injusta.

O Judiciário brasileiro é moroso, e os obstáculos para alguém obter seu direito por meio de ação judicial são uma verdadeira via crucis. O razoável seria criar mecanismos para minorar o suplício do credor. Mas o governo optou por fazer o inverso.

O Código de Processo Civil atualmente em vigor, tal como fazia o código revogado, coíbe a tentativa de fraude à execução acima descrita. Isso ocorre não só para proteger o credor, mas também para garantir a efetividade das decisões judiciais. Nenhum país pode se desenvolver sem a mínima segurança jurídica. Um Judiciário que protege e obriga o cumprimento das leis e contratos é essencial para a segurança jurídica.

De acordo com a MP editada, será praticamente impossível a José Coitado penhorar os bens imóveis vendidos por João Malandro. A ladina modificação legislativa efetuada pela MP, a pretexto de proteger o comprador dos imóveis de João Malandro, estabeleceu que, na prática, José Coitado não poderá penhorar os bens vendidos por João Malandro em razão da presumida boa-fé do comprador.

A questão parece ser razoável: o comprador de boa-fé não deveria ser prejudicado. O diabo, contudo, mora nos detalhes: o comprador não precisa fazer nada para demonstrar que não sabia das intenções maléficas de João Malandro. José Coitado é que tem o ônus de provar o conluio, não bastasse todo o sofrimento causado pela necessidade de ingresso de ação judicial, de anos de espera em uma batalha que poderá ser uma vitória de Pirro. Na prática, a prova do conluio não é singela, mas sim muito difícil de ser feita.

O Código de Processo Civil, na hipótese descrita, não discute a boa-fé ou a má-fé do comprador. Esse elemento era irrelevante até o advento da MP recém-editada. É certo que o comprador, tanto antes como agora, na esmagadora maioria dos casos, dispõe de procedimentos singelos para descobrir se a venda de um imóvel poderá ser caracterizada como fraude à execução.

As regras existentes antes da MP mantinham um equilíbrio entre três valores importantes: de um lado, a proteção do comprador de imóveis; de outro, o direito do credor, bem como da efetividade das decisões judiciais, algo crucial para a segurança jurídica.

Agora, porém, essa situação foi desbalanceada: a MP, além de prejudicar o direito do credor, beneficiou a malandragem do devedor e reduziu ainda mais a efetividade das decisões judiciais. Um absurdo.

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