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Suely Araújo

O Senado deve aprovar o projeto que amplia o poder do Ministério da Agricultura de registrar agrotóxicos? NÃO

Bizarrice jurídica, texto aumenta riscos para agricultores e consumidores

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Suely Araújo

Urbanista, advogada e professora no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e na Universidade de Brasília (UnB); especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, foi presidente do Ibama (2016-2018)

Em 1989, quando a Lei dos Agrotóxicos foi aprovada, o Brasil estava sob intensa pressão doméstica e internacional por má gestão do meio ambiente. O governo federal e o Congresso se uniram para dar uma resposta à sociedade com o programa Nossa Natureza, que estabeleceu importantes pilares da proteção aos ecossistemas brasileiros e à saúde da população. Entre eles estava a inédita legislação sobre controle de agrotóxicos.

Em 2022, com o país novamente na berlinda e os brasileiros exigindo mais proteção ambiental, o governo federal e o Congresso se uniram novamente, só que desta vez para dar uma banana —envenenada— à sociedade. O projeto de lei 6.299/2002, aprovado pela Câmara, é um dos sinais mais eloquentes desse descaso.

Cartazes colados em São Paulo e em Brasília com imagens de deputados que apoiam o chamado PL do veneno, que facilita registro de agrotóxicos no Brasil - Ronny Santos - 9.fev.22/Folhapress

Uma das principais mudanças da proposta ora no Senado é a redução do papel da Anvisa e do Ibama no registro de agrotóxicos. Hoje a competência de analisar e aprovar esses produtos é dos órgãos federais de Agricultura, Saúde e Meio Ambiente, todos com poder de veto. O PL 6.299 concentra esse poder na Agricultura e reduz a Anvisa e o Ibama a meros homologadores de estudos apresentados pelos fabricantes de veneno.

Apenas isso já seria motivo suficiente para o Senado rejeitar o texto aprovado pelos deputados. Mas o projeto vai muito além: ele elimina as vedações da lei atual ao registro de determinados produtos. Hoje, agrotóxicos que revelem possuir características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas ou que provoquem distúrbios hormonais não podem ser registrados no Brasil. O projeto elimina esse ​checklist e põe em seu lugar algo que atende pelo nome enganoso de "análise dos riscos".

É uma bizarrice jurídica. A proposta faz referência a uma vaga avaliação da "natureza e da magnitude" dos riscos, sem explicitar quem fará isso e de que forma. Pior ainda, propõe gerenciar tais riscos ponderando "fatores políticos, econômicos, sociais e regulatórios (...) em consulta com as partes interessadas" e, "se necessário, selecionar opções apropriadas para proteger a saúde e o meio ambiente". Em português claro, o PL 6.299 dedetiza os imperativos constitucionais do Estado de proteger a saúde e o meio ambiente e os subordina a interesses políticos e econômicos. Deixa-se, assim, uma avenida aberta ao registro de agrotóxicos que causem câncer e outros problemas graves. Daí as manifestações veementes de associações científicas contra a proposta.

A bancada ruralista alega que a aprovação de agrotóxicos é morosa demais no Brasil. Não é bem assim. Uma análise do Ibama de um agrotóxico novo leva um ano e meio, contra três anos na Europa e até dois anos no Japão. O que há no Brasil é uma fila longa para o início da análise, que decorre da falta de pessoal nos órgãos de controle. O Ministério da Agricultura possui mecanismos para "furar" essa fila. Foi assim que a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, liberou 1.552 agrotóxicos no país em três anos.

O discurso de mudar a lei para "modernizar" a agricultura não para de pé. Metade dos agrotóxicos registrados no Brasil jamais chega ao agricultor —serve apenas para elevar o valor de mercado das empresas. E países de agricultura altamente tecnificada, como os europeus, estão tirando agrotóxicos das prateleiras; o número de substâncias ativas no mercado de lá caiu de mil para 400 desde o fim dos anos 1990.

Se quisessem mesmo dar alimentos seguros à população e acelerar análises, suas excelências estariam usando o dinheiro de suas emendas de relator para aumentar o pessoal do Ibama e da Anvisa. O objetivo, em vez disso, parece ser desmontar o Estado e criar uma roleta-russa do veneno.

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