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Rodrigo Jungmann

A pobreza do liberalismo brasileiro

Nossos liberais não costumam ir muito além de concepções economicistas

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Rodrigo Jungmann

Doutor em filosofia pela Universidade da Califórnia, é professor da Universidade Federal de Pernambuco

No último dia de aulas remotas do semestre passado, um aluno me afiançou, muito educado, que gostara bastante das minhas preleções. Avançou a ressalva, no entanto, de que, com todas as vênias, não poderia deixar passar batida a ocasião de assinalar uma certa perplexidade. Causava-lhe espanto que eu houvesse me declarado mais de uma vez um defensor do liberalismo.

A sequência da conversa deixou claro que, por "liberalismo", o aluno entendia tão só o "neoliberalismo", uma concepção de ordem econômica que chegou ao poder no fim dos anos 1970 e começo dos 1980 com as vitórias eleitorais de Margaret Thatcher e Ronald Reagan.

O economista britânico John Maynard Keynes, defensor da presença estatal na economia
O economista britânico John Maynard Keynes, defensor da presença estatal na economia - Reprodução

Uns cinco ou dez minutos bastaram para que eu fosse capaz de esclarecer-lhe que, por "liberalismo", tinha em mente a ordem política liberal e que, nos termos da terminologia que me parece mais adequada, um John Maynard Keynes figura comodamente como um liberal de esquerda, ao passo que um Friedrich Hayek deve ser tido na conta de liberal de direita. A diferença entre os dois autores economistas, como é sabido, radica-se numa distinta compreensão do papel ideal do Estado na economia —muito mais abrangente, na concepção de Keynes; tão pouco intrusivo quanto possível, no entender de Hayek.

O aluno pareceu genuinamente surpreso, mas me agradeceu pela resposta e, por assim dizer, me "perdoou". Que explicação pode ser oferecida para um tamanho mal-entendido? Seria por demais cômodo e evasivo explicar a ocorrência culpando exclusivamente certa esquerda pelas caricaturas simplificadoras tão amiúde associadas ao termo "neoliberalismo".

O fato é que os liberais brasileiros realmente passam exclusivamente por neoliberais, e que o liberalismo entre nós costuma não ir muito além de concepções economicistas. Meu ponto aqui é que nossos liberais são em grande parte responsáveis eles mesmos por este estado de coisas. E o são em razão do que bem poderia ser chamado de obsessão pela economia.

O economista Friedrich von Hayek, um dos maiores representantes da Escola Austríaca de pensamento econômico, em fotos dos anos 1930 e 1970 - AP

No momento em que escrevo, tenho diante dos meus olhos uma tradução de "On Liberty", obra de um liberal por excelência, John Stuart Mill. A tradução é excelente, mas é bem digno de nota o fato de que tenha por título "Da Liberdade Individual e Econômica" (Faro Editorial).

Causa espécie tal escolha, visto que o livro definitivamente tem uma ênfase inteiramente diversa. E certamente não se pode atribuir a Mill uma defesa do chamado Estado mínimo (o pensamento do filósofo britânico é marcado por um acentuado ecletismo, a que não se pode fazer justiça em poucos parágrafos).

Não bastasse essa estreiteza de visão, a pandemia em curso deixou tristemente claro que muitos autonomeados liberais brasileiros não chegam sequer a entender que, se é verdade por um lado que a liberdade preconizada por Mill entrona o indivíduo na posição de soberano absoluto da sua vida privada, daquele âmbito de ações que dizem respeito exclusivamente à sua própria pessoa e que só sobre ela exercem efeitos, não é menos verdade que tal liberdade perde a sua sanção incondicional sempre que pode redundar em ações que causem danos a terceiros.

O filósofo e economista britânico John Stuart Mill - London Stereoscopic Company/Wikimedia/Folhapress

No domínio propriamente teórico, a situação é ainda mais desoladora. Quantos jovens estudantes da matéria têm ciência de que um erudito da estatura de um José Guilherme Merquior se proclamava orgulhosamente como um liberal social? Ou mesmo do que vem a ser o liberalismo social? Com que frequência se mencionam entre nós autores como T. H. Green, John Hobson ou Leonard Trelawny Hobhouse?

Por fim: a rejeição ao despotismo, o direito à vida, à expressão e à propriedade, o império da lei, a competição regrada de interesses e crenças, os mercados livres, a expansão do rol de atores políticos até o advento do sufrágio universal —tudo isso fez e faz parte da tradição liberal. Como também o fez a noção humboldtiana de "Bildung" e de autocultivo da mente; o perfeccionismo, em suma. E que o Estado bem pode ter um papel fundamental a desempenhar nesse domínio. Mas disso o leitor dificilmente terá ciência lendo os liberais brasileiros.

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