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Natalia Viana

Extradição de Assange aos EUA é ameaça a todos os jornalistas

Precedente criará vulnerabilidade legal, também, para organizações de mídia

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Natalia Viana

Jornalista, é cofundadora da Agência Pública de Jornalismo Investigativo e presidente da Ajor (Associação de Jornalismo Digital)

A lamentável decisão da Suprema Corte britânica de não permitir recurso à extradição de Julian Assange, fundador do WikiLeaks, aos EUA, é uma ameaça direta a todos os jornalistas. Vale sempre lembrar: Assange é acusado de 18 crimes, sendo 17 por violar a Lei de Espionagem, obtendo e publicando os documentos diplomáticos que revelaram como se comportam os embaixadores dos americanos pelo mundo. Ele não é americano e nem estava nos EUA à época do vazamento; por isso, o pedido de sua extradição não tem precedentes.

Assange, a quem eu conheci em 2010 quando coordenei a parceria com esta Folha e O Globo para publicação no Brasil desse vazamento de inegável interesse público, sempre nos alertou que havia, por trás do emaranhado de acusações contra ele feitas pela Suécia, a "longa manus" dos Estados Unidos, que o queria punir por ter publicado justamente esses documentos, além de ter exposto crimes de guerra no Iraque e Afeganistão. Muita gente —eu, inclusive— achava que era paranoia. Pensava que um país democrático jamais gastaria tanto tempo e dinheiro para prender um publisher que revolucionou o modo como a imprensa deve cobrir grandes vazamentos. Eu estava errada.

O fundador do Wikileaks, Julian Assange, na varanda da Embaixada do Equador em Londres - Justin Tallis - 23.mar.22/AFP

Depois do WikiLeaks, grandes vazamentos de informação —da Vaza Jato ao Facebook Papers— têm seguido mais ou menos o mesmo formato. Diversas Redações se juntam para analisar e dar conta de quantidades enormes de dados e documentos, colaborando e publicando conjuntamente. O impacto desse tipo de cobertura é inegável. E quem solidificou o modelo foi Julian Assange, a quem alguns negam, mesquinhamente, o título de jornalista.

Ainda bem, esse não é o caso das principais organizações de defesa do jornalismo no mundo: a Repórteres Sem Fronteiras, a Fundação pela Liberdade de Imprensa, a Federação Internacional de Jornalistas, o Comitê para Proteção de Jornalistas e a Anistia Internacional, entre outras, lamentaram a decisão e apelam para que que os EUA desistam da extradição.

Elas são uníssonas em alertar que o precedente estabelecido cria uma vulnerabilidade legal para todos os jornalistas e todas as organizações de mídia do mundo. Se publicar informações secretas do governo norte-americano —ou de qualquer outro governo— é crime, e um crime sem fronteiras, o jornalismo, em si, está sendo criminalizado.

Exauridos os recursos na Justiça, cabe à ministra do Interior britânica, Priti Patel, autorizar a extradição.
E o governo de Joe Biden tem agora em suas mãos a decisão de seguir em frente e permitir a pavorosa cena de um combalido Assange algemado, arrastado para um avião para cruzar o oceano e ser novamente encarcerado depois de mais de uma década —enquanto procura valer-se da liderança moral dos Estados Unidos para promover sanções econômicas à Rússia pela invasão da Ucrânia, em nome da democracia e da liberdade.

Se seguir nesse rumo, não há dúvidas de que a máquina de propaganda russa vai saber usar essa cena para reforçar sua narrativa de que os EUA lideram um "império de mentiras" para justificar seus ataques à Otan e a guerra contra a Ucrânia.

De troco, a decisão vai facilitar o caminho para que outros governos autoritários, seja o russo, seja de outros países, usem a acusação de "espionagem" para prender jornalistas estrangeiros que ousam investigar seus abusos.

Em resumo, o jornalismo mundial sai perdendo.

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