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Fernando Cássio

Gentileza e autocontenção

Escolher entre matemática e empatia é dilema inexistente nas escolas privadas

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Fernando Cássio

Educador, doutor em ciências (USP) e professor da UFABC, integra a Rede Escola Pública e Universidade (Repu) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

"Você acha mais importante a escola dar aula de matemática ou de empatia?", indagou a colunista Laura Mattos nesta Folha (17/3). A pergunta, aparentemente endereçada aos 20% da população pagante de mensalidades em escolas privadas, pretende chamar atenção para os inovadores programas escolares voltados ao desenvolvimento de habilidades socioemocionais como resiliência, persistência, foco e empatia.

Dentre os exemplos de produtos educacionais elencados no artigo estava uma atividade oferecida a estudantes do quarto ano do ensino fundamental e baseada na história de vida de José Datrino (1917-1996), o Profeta Gentileza. O objetivo pedagógico da empresa proponente era levar os estudantes a encenarem situações em que "a gentileza faz a diferença", ajudando a lidar, por exemplo, com a frustração de um eventual mau desempenho escolar.

Estudantes do colégio Mater Amabilis, de Guarulhos, com material didático sobre emoções, em aula de aprendizado socioemocional, do Programa Semente; escolas particulares estão investindo em sistemas que desenvolvam habilidades socioemocionais dos alunos - Divulgação

A provocação contida na pergunta serve apenas à economia da lacração nas redes sociais, posto que escolher entre matemática e empatia é dilema inexistente nas escolas privadas. Nestas, com ou sem aulas de empatia, jamais vai faltar aula de matemática. Além disso, programas de autoajuda infantojuvenis já existem nas escolas privadas mais caras do país desde os anos 1990, sob eufemismos como "educação em direitos humanos", "inteligência emocional" e "projeto de vida".

A fim de abocanhar uma fatia maior do mercado, esses programas se adaptaram ao ensino apostilado de qualidade questionável que fagocitou as classes médias mais remediadas nas últimas décadas.

Acrescidos de um verniz científico, foram repaginados como "habilidades socioemocionais" a partir da aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e com o empenho do empresariado —tão interessado em vender seus produtos para escolas privadas quanto em emplacar a gentileza como política pública para quem tem a escola pública como única opção na vida. É esta última a verdadeira oportunidade de negócio.

No perigoso cruzamento entre o jornalismo de opinião e a assessoria de imprensa, o texto serve a três propósitos: 1) estimular as famílias a buscarem um novo diferencial de mercado na educação privada; 2) informar os mantenedores das escolas privadas sobre a existência de pacotes prontos para o ensino de habilidades socioemocionais; e, mais importante, 3) advertir os gestores das redes públicas para que não fiquem de fora dessa revolução educacional.

Estudantes de escola municipal de Campanha, em Minas Gerais, em atividade do Programa Semente; adoção de metodologias para o desenvolvimento socioemocional ainda são raras em escolas públicas - Divulgação

De fato, é na seara do ensino público onde a escolha entre aulas de matemática e de empatia ganha maior relevância. A mesma BNCC que celebra o ultraindividualismo e postula a necessidade de ensinar habilidades socioemocionais também promove um esvaziamento radical dos conteúdos escolares, sobretudo no ensino médio.

A "liberdade de escolha" —uma das grandes promessas do novo ensino médio aos estudantes— sempre foi fato dado para as classes médias e elites, para as quais não faz sentido escolher entre aulas de matemática ou empatia. Já para os não agraciados com a dádiva da liberdade, a opção entre empatia e matemática é dada a partir de fora, por políticas de centralização curricular como a BNCC. Para os mais pobres, menos matemática e mais empatia.

Nas escolas estaduais, estudantes do ensino médio já vêm protestando contra a falta de conteúdos e a substituição das aulas por telecursos. "TV eu tenho em casa, venho na escola para ter professor!", gritaram recentemente secundaristas do Paraná. Em São Paulo, os estudantes vêm utilizando os televisores instalados nas salas de aula para se divertir no TikTok. Magnânimos, os arautos das tecnologias empresariais de autocontenção concluem que a revolta e o sarcasmo dos estudantes demonstram a necessidade de se aprender mais gentileza e resiliência na escola pública.

É sintomático que os pacotes de habilidades socioemocionais propagandeados no artigo enfatizem o desenvolvimento da gentileza e da empatia em detrimento, por exemplo, da solidariedade. Consciência social sim, mas com limites. Na pedagogia do amor defendida pelos ricos, gentileza gera gentileza.

Ninguém conta aos estudantes que o saudoso profeta fluminense, para além do repisado mote, pregava o amor entre as pessoas em oposição ao capitalismo e à obsessão individualista pelas coisas venais.

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