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Grilagem de terras na Amazônia: o roubo de um patrimônio público

Usurpação poderá se agravar caso projetos sobre regularização fundiária avancem

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"Grilagem": substantivo feminino. Apossamento de terras mediante falsos títulos de propriedade. Organização ou maneira de se portar dos grileiros, das pessoas que buscam se apoderar de terras alheias, apresentando escrituras falsas.

A apropriação de terras públicas por privados é fenômeno tão comum no Brasil que cunhamos um termo específico e criativo para designá-la: grilagem. Em 500 anos, a ocupação de nosso território foi promovida por meio de longa sequência de incentivos estatais. Começamos com capitanias e sesmarias, passamos pelas entradas e bandeiras nos sertões, para culminar com a derrubada desordenada de nossas florestas, amazônica à frente, dentro da lógica de "ocupar para não entregar". Tal processo histórico está gerando inúmeros danos ao país, entre eles, o agravamento das injustiças sociais e perdas de nossos recursos naturais.

Na Amazônia, para ficar num exemplo mais recente desse danoso processo, temos hoje 56,5 milhões de hectares de florestas públicas não destinadas, um patrimônio que é de todos os brasileiros, e infelizmente objeto de agressiva grilagem. Em situação que vem piorando nos últimos anos, essa atividade vem usando o Cadastro Ambiental Rural (CAR) para emprestar um verniz de legalidade às invasões de terras públicas que promove.

Segundo análises do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), a área com CARs declarados ilegalmente como imóveis rurais subiu de 11 milhões de hectares, em 2018, para 20 milhões de hectares atualmente. São áreas que contam atualmente com florestas, mas que poderão ser desmatadas nos próximos anos, em direto desrespeito à Lei de Gestão das Florestas Públicas, de 2006, que impede o corte e a destruição dessa vegetação.

Ainda mais grave, a grilagem e o desmatamento, além de gerar violência e perda de patrimônio público, são uma grande fonte de emissões de gases de efeito estufa. Até 2020, o roubo de florestas já havia desmatado 3,2 milhões de hectares, área maior que o estado do Alagoas, emitindo 1,6 bilhão de toneladas de CO2. Esse volume de gás de efeito estufa representa 75% das emissões anuais do Brasil. O Brasil aumentou em quase 10% a liberação de carbono para a atmosfera em 2020, enquanto o mundo reduziu as emissões, com a queda de atividade econômica em função da pandemia.

Seguindo na mesma toada, o Ipam estima em mais 1,7 milhão de hectares a área a ser desmatada até 2030, com acréscimo de 800 milhões de toneladas de CO2 às nossas emissões nacionais.

Toda essa usurpação das florestas públicas poderá se agravar se dois projetos de lei sobre regularização fundiária (PLs 2633 e 510), atualmente tramitando no Senado, forem aprovados. Tal aprovação colocará o país na direção contrária aos esforços globais pelo clima e contra os compromissos internacionais brasileiros, com todas as repercussões que podem advir, no Brasil e no exterior.

A boa notícia é que há solução para tal quadro de destruição das florestas em terras públicas. E ela é exequível. Com vontade política, poucas medidas administrativas podem inverter a curva do desmatamento, fazer justiça com quem trabalha a terra e recolocar o país em linha com seus compromissos com o clima do planeta e às populações da região que nada ganham com o desmatamento e a grilagem.

Essas ações ilegais não geram riqueza para os habitantes da Amazônia. Ao contrário, vivem na região cerca de 22 milhões de brasileiros que carecem de infraestrutura, como saneamento básico e comunicação, e de serviços públicos essenciais, como educação e saúde. Ao lado disso, aplicar as leis e normas já existentes permitiria titular as terras das pessoas que foram estimuladas pelo Estado, até 30 anos atrás, a ocupar e desenvolver a Amazônia.

É justo titular as terras de quem, por estímulo estatal, migrou em boa-fé e fez a vida na Amazônia. No entanto, chega a ser imoral usar tal justificativa para premiar oportunistas que se instalaram ilegalmente na região e grilaram terras para especular e ganhar dinheiro à custa do patrimônio público, como ocorrerá caso os dois PLs sejam aprovados sem modificação.

Como instituição responsável por levar adiante a tramitação desses projetos de lei, cabe ao Senado convidar a sociedade, a ciência e o agronegócio a dialogar sobre agenda de tamanha relevância para o Brasil, em temática de claro interesse intergeracional. O assunto justifica amplo e profundo debate, como em outros processos igualmente complexos e relevantes, de que o Código Florestal é bom exemplo. Todos estamos prontos para esse diálogo, e a sociedade brasileira só tem a ganhar com essa prática que fortalece a democracia.

André Guimarães
Diretor Executivo do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia)

Marcello Brito
Empresário do agronegócio

Paulo Artaxo
Professor titular do Instituto de Física da USP

Paulo Hartung
Ex-governador do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018) e presidente-executivo da Ibá (Indústria Brasileira de Árvores)

* Os autores são membros do Grupo Estratégico da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura

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