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Letícia Bahia e Marina Helou

O deputado estadual Arthur do Val deve ter o mandato cassado? SIM

É a oportunidade de, finalmente, traçar o limite do aceitável

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Letícia Bahia

Diretora-executiva da Girl Up Brasil

Marina Helou

Deputada estadual (Rede-SP) e membro do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Assembleia Legislativa de São Paulo

"São fáceis porque são pobres." O deputado estadual Arthur Do Val (sem partido-SP) reagiu ao vazamento dos áudios que contêm este e outros absurdos como que flagrado em alguma espécie de travessura, coisa de moleque. Mas a realidade é que suas palavras traduzem com precisão a crueldade com que o mundo trata as mulheres.

Mulheres não têm poder, protagonismo, representatividade. Na guerra e fora dela, na Ucrânia e no Brasil, nas ruas e nas Casas Legislativas, mulheres toleram toques não consentidos, engolem comentários supostamente elogiosos, transam com quem não querem, são ameaçadas de estupro, fotografadas e expostas em sua intimidade. Faltou dizer que a nossa miséria depende de homens como Arthur. O estarrecedor na fala do deputado é precisamente essa revelação: trata-se de um homem cujo prazer deriva da pobreza das mulheres.

Homem aparece gravando o vídeo, como se fosse uma selfie, à noite
O deputado estadual Arthur do Val (sem partido-SP) em trecho do vídeo que gravou na fronteira entre a Ucrânia e a Eslováquia - Reprodução Youtube

O ex-integrante do MBL (Movimento Brasil Livre) e seus defensores tentam colocar o foco do debate no caráter privado dos áudios. Renan Santos, parceiro de viagem de Arthur à Ucrânia, ousou levantar o dedo e bradar, entre chiliques e perdigotos, que vamos perder "nosso melhor deputado" por causa de meras palavras.

É preciso explicar, já que os companheiros de farra carecem de envergadura moral para entender. Não é sobre falas, é sobre a mais absoluta falta de empatia. Nem no meio de uma guerra Mamãe Falei consegue ser algo além de um protótipo de macho alfa. Ao enxergar refugiadas ucranianas como objeto sexual, ele ofende a todas, porque ser mulher é conviver com a ameaça da humanidade negada.

"Se encontro na rua, soco até ser preso", retuitou o ator José de Abreu sobre a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP). "Só não te estupro porque você não merece", vociferou o hoje presidente da República à também deputada Maria do Rosário (PT-RS).

Em 2021, a ex-deputada e candidata à Vice-Presidência Manuela D’Ávila (PC do B-RS) denunciou ameaças de estupro contra sua filha de cinco anos depois que fotos da criança vazaram. No mesmo ano, o deputado estadual Fernando Cury (sem partido) foi flagrado pelas câmeras da Assembleia Legislativa de São Paulo e responde agora criminalmente por importunar sexualmente a colega Isa Penna (PC do B-SP). Até quando trataremos assim nossas representantes?

Qualquer punição que não seja a cassação vai legitimar a violência contra a mulher. O ambiente político é inóspito para nós, que ocupamos míseros 15% dos assentos no Congresso e 12% das prefeituras brasileiras. Nas executivas nacionais dos partidos, somos 21%, e a maioria deles —22 de 32 legendas— descumpriram em 2020 o mínimo de 30% do fundo eleitoral para candidaturas femininas. Sem recurso e com poucos amigos, nossas mobilizações raramente voam alto. E aqui está nosso problema: aqueles que permitiram isso até hoje são os mesmos que vão julgar Arthur.

Não surpreende que as negociações caminhem para longe da cassação. Eleito com 478.280 votos e tendo alcançado 9,8% do total quando candidato à Prefeitura de São Paulo, Arthur também conta com 2,7 milhões de seguidores no YouTube e a força nas redes do MBL. Esses ativos interessam a partidos e políticos que querem tê-lo como puxador de votos: farão de tudo por uma punição que evite o impedimento para uma candidatura em outubro. Chegam a dar enjoo as falas acaloradas, moralistas e em defesa das mulheres dos mesmos que negociam e articulam uma pena mais branda em troca de vantagens que possam tirar para si deste episódio.

A cassação é a única consequência civilizada. É a oportunidade de, finalmente, traçar o limite do aceitável. Qualquer outro desdobramento é a manutenção da violência política contra mulheres. Estaremos atentas.

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