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Anete Abramowicz e Maria Cristina Soares de Gouvea

Precisamos falar sobre Jonatas, uma criança executada

Como é possível prosseguirmos sem urrar que o intolerável foi ultrapassado?

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Anete Abramowicz

Professora titular da Faculdade de Educação da USP, é pesquisadora na área da sociologia da infância

Maria Cristina Soares de Gouvea

Professora titular da Faculdade de Educação da UFMG, é pesquisadora em estudos da infância

Entre 1954 e 1955, João Cabral de Melo Neto escrevia a obra "Morte e Vida Severina", sobre a dura e sofrida trajetória de uma família retirante em Pernambuco. Ali, a infância morria de sede e de fome. Passados 67 anos, novamente em Pernambuco, mais precisamente em Barreiros, na Zona da Mata Sul, uma criança de nove anos é deliberadamente assassinada.

O que temos aqui é a permanência da morte da infância, ainda mais banalizada e brutalizada. Morte esta que, nos últimos anos, conjuga-se mais diretamente à violência doméstica, urbana e de extermínio de populações e minorias.

Cama onde o menino teria se escondido com a mãe antes de ser morto por homens encapuzados - Divulgação
Cama onde o menino Jonatas, 9, teria se escondido com a mãe antes de ser morto por homens encapuzados - Divulgação

Segundo dados do Unicef, 35 mil crianças foram assassinadas no Brasil nos últimos cinco anos —o homicídio de crianças de até nove anos cresceu 27% neste período. Acompanhamos esses assassinatos, conhecemos alguns nomes e rostos daqueles a quem lhes foi tirado o direito de viver: Ágatha, João Pedro, Henry, Jenifer, ​Kauan, Kauã, Kauê, Ana Carolina, Kethellen e tantos outros cuja curta trajetória habita o silêncio e as sombras da história.

Agora falemos de Jonatas, menino negro de 9 anos, filho de um casal de lavradores e dirigente sindical. Jonatas não morreu de "bala perdida" (que sabemos serem encontradas, via de regra, no corpo de crianças negras e pobres das periferias urbanas). Jonatas também não morreu em decorrência da violência doméstica, como em tantos outros casos. Jonatas foi deliberadamente exterminado —sua morte foi escolhida para matar simbolicamente seus pais, retirando-os da luta por uma vida digna.

Uma sociedade que torna possível uma criança ser exterminada para fazer sofrer e calar os pais é uma sociedade que perdeu sua humanidade. Um crime desses só é possível porque, antes, nos calamos diante de 35 mil mortes.

Ao suportarmos o insuportável, naturalizamos a barbárie. Impossível não constatarmos que a grande maioria destas 35 mil crianças são pretas e pobres e que a cumplicidade do nosso silêncio se relaciona ao menor valor que atribuímos a essas vidas, ainda que crianças —como diz Judith Butler, "vidas que não são choradas, cujo luto não se faz".

Não há como não lembrar os escritos de Primo Levi, em seu livro "É Isto um Homem?", quando de alguma maneira perguntava como é possível continuar sendo homem e viver tranquilo com a comida quente e rostos amigos depois de tanta barbárie aflorada. Ou seja, como é possível prosseguirmos sem urrar que o intolerável foi ultrapassado? E daí? Alastrou-se pela atmosfera social em contraposição à tolerância, à empatia. Uma criança foi deliberadamente assassinada. Se não fizermos nada, a infância nos cobrará caro.

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