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Paulo Sérgio Pinheiro

Nosso passado autoritário não é passado ainda

Decisão de comitê da ONU sobre Lula expõe brechas perigosas na Justiça

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Paulo Sérgio Pinheiro

Professor titular de ciência política da USP, foi coordenador da Comissão Nacional da Verdade (2013) e ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos (2001-02, governo FHC)

O Comitê de Direitos Humanos da ONU, que monitora o cumprimento do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, acaba de reconhecer que o processo contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) violou as garantias do devido processo legal e seus direitos políticos.

Foi constatado que o ex-presidente teve seus direitos violados pelo Estado brasileiro ao não ter acesso a um processo justo e não ter tido protegida sua presunção de inocência. Ao mesmo tempo, o comitê reconheceu que Lula teve seu direito à participação política igualmente violado durante o pleito de 2018, quando foi impedido de concorrer.

A decisão do comitê deve ser lida com cuidado por todos que atuam para proteger e promover a democracia e o Estado de Direito no Brasil. As violações sofridas pelo ex-presidente individualmente, desde sua caçada televisionada até sua prisão prolongada, tiveram impacto imediato e profundo na trajetória política e social do país.

O governo Jair Bolsonaro (PL), fruto maior dessa sequência nefasta, iniciou um dos períodos de maior retrocesso na nossa história política desde o fim da ditadura de 1964. A decisão do comitê da ONU, ao ratificar as violações sofridas por Lula, confirma que na democracia brasileira sobrevivem falhas estruturais no sistema de Justiça, e essas brechas dão espaço para perigosas forças antidemocráticas.

Absurdos cometidos desde a primeira instância, ao divulgar-se em rede nacional áudios de interceptação telefônica ilegal da própria presidenta Dilma Rousseff (PT) até os erráticos trâmites no sistema judicial, com alto grau de imprevisibilidade e voluntarismo, jogando e tirando temas de pauta, alterando decisões individualmente de um dia para outro.

O ex-procurador Deltan Dallagnon e o ex-juiz Sergio Moro - Theo Marques/UOL

Durante os processos sobrevivia uma proximidade perigosa entre operadores da Justiça e donos do poder. Contatos especiais adiantando informações sobre a perseguição ao ex-presidente Lula e humilhando seus familiares, publicidade oportunista de delações, projetos de pactos e traições que gestaram a insegurança institucional que explodiu com Bolsonaro no poder.

Preso injustamente por 580 dias, o ex-presidente Lula enfrentou os abusos de um sistema de Justiça penal que chegou à crueldade de negar a um detento a possibilidade de viver o luto em família. Foi impedido de conceder entrevistas, mantido em completo isolamento enquanto ocorria o processo eleitoral.

A ficção de guerra implacável contra a corrupção abria espaço para todo o tipo de exceções, acelerando condenações improvisadas sem mesmo ter o cuidado de uma revisão de texto de sentenças.

Nosso passado autoritário não é passado ainda. A guinada autoritária que se inicia com o impeachment da ex-presidenta Dilma e que culmina no processo que condenou e silenciou o ex-presidente Lula fez reflorescer o que havia de pior nos padrões de violência e arbítrio que nossas três décadas de democracia não conseguiram debelar. Negando os crimes do regime militar, como ainda fazem repetidamente algumas autoridades civis e militares, celebrando a ditadura de 1964, negando o racismo estrutural, a discriminação de gênero e a desigualdade econômica brutal.

Desse modo, as forças mais retrógradas da nossa vida política conquistaram um espaço jamais alcançado antes sob a Constituição de 1988 e iniciaram um processo de acelerada ​desconsolidação da nossa democracia. A decisão do comitê chega quando o país se prepara para mais uma eleição. Que todas as forças políticas compromissadas com a democracia, que todos os participantes do debate que começa percebam que, quando se trata da proteção de garantias fundamentais, não pode haver espaço para improvisação. Desqualificar o Estado de Direito e atacar garantias fundamentais, como a observância do devido processo legal, têm preço altíssimo. Sempre.

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