Descrição de chapéu
Leandro Machado

O Brasil e sua elite desconectada

'Brazil Conference', nos EUA, expõe incoerências com a realidade do país

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Leandro Machado

Cientista político, é mestrando em administração pública na Harvard Kennedy School (EUA) e autor do livro “Como Defender Sua Causa” (ed. Nacional)

A pacata cidade universitária de Cambridge, nos EUA, presencia um frisson de brasileiros todos os anos, no início da primavera. São participantes da "Brazil Conference", evento que ocorrerá nos dias 9 e 10 de abril e é idealizado por alunos e pesquisadores das mais renomadas universidades do mundo, Harvard e MIT, para discutir as grandes questões brasileiras. Neste ano, pela primeira vez, estudantes de outras universidades da região também participam da organização. Entre alunos, ex-alunos e convidados, o evento reúne desde 2015 parte da elite do Brasil em dois dias de palestras e debates.

Concebida por quem conseguiu entrar em instituições tão concorridas, devemos esperar rigor acadêmico e pensamento crítico em uma conferência que, segundo os próprios organizadores, "valoriza o debate de alto nível, buscando discutir temas complexos e controversos para pensar o Brasil que queremos". É natural supor que os tópicos centrais de discussão sejam nossos problemas reais, como a fuga recorde de profissionais qualificados do país, a degradação da Amazônia ou a vergonhosa desigualdade racial.

Campus da Universidade Harvard, nos EUA, que sediará conferência brasileira em abril - AFP

Mas não é este o caso. Se considerarmos a "Brazil Conference" como um indicador de pensamento crítico, os alunos brasileiros de Harvard, MIT e outras universidades de ponta estão abaixo da média. Da quase inexistente diversidade racial entre os painelistas à irrelevância de boa parte dos temas apresentados, a conferência mais parece um capítulo enfadonho de uma novela de Manoel Carlos: aquela doce vida de branco num Leblon imaginário.

Em um país em que pretos e pardos compõem mais da metade da população, a conferência tem menos de 10% de painelistas negros. Como oradores principais, todos brancos. O número de juízas está caindo, segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça)? A conferência preferiu pautar pioneirismo feminino no Poder Judiciário. O desemprego que assola mais de 12 milhões de brasileiros, as indecentes taxas de violência contra a população LGBTQIA+ e a degradação da Amazônia não mereceram nenhum painel. Já o "desenvolvimento da influência digital" e a "inovação no mercado de pagamentos" são temas quentíssimos para nossa elite desconectada.

Ciro Gomes (PDT), Eduardo Leite (PSDB), Fernando Haddad (PT), João Doria (PSDB) e Luciano Huck (sem partido) no Brazil Conference de 2021 - Reprodução/YouTube

Para ser justo, é preciso reconhecer que algumas discussões parecem tocar em questões importantes, como a defesa da democracia ou o fim da pobreza. E nem todos os estudantes participam da conferência ou concordam com as escolhas dos alunos e pesquisadores que a organizaram. Também é certo que painelistas como o climatologista Carlos Nobre e a filósofa Djamila Ribeiro trarão, em suas falas, questões relacionadas à Amazônia e ao racismo.

Mas não dá para responsabilizar os convidados pela má organização da festa. É indesculpável que as novas gerações continuem repetindo um padrão tão nocivo da sociedade brasileira: fingir que nossos problemas não existem. Empurrar a sujeira para debaixo do tapete, imaginando que ela irá desaparecer num passe de mágica, tem sido o comportamento da nossa elite desde a época do Império. Não deu muito certo.

É preciso que os alunos mais conscientes tomem a frente da organização da próxima conferência e a coloquem no local que ela deveria ocupar. Um encontro plural sobre as melhores soluções já estudadas e testadas para erradicar nossa pobreza, violência e racismo, aumentar a qualidade da nossa educação pública e inovar a partir do nosso inestimável patrimônio ambiental, utilizando-o de maneira sustentável e gerando riqueza para todos.

O mínimo que se espera de alunos de universidades de excelência, como Harvard e MIT, são notas acima da média. No quesito pensar o Brasil que queremos, não será desta vez. Quem sabe em 2023?

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.