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Pedro Hartung

O que escondem as fotos da 'batida policial' contra crianças na Paulista

Complexa realidade é tratada por viés policialesco, menorista e estereotipado

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Pedro Hartung

Diretor de Políticas e Direitos da Criança do Instituto Alana

No vão considerado livre do Masp, crianças e adolescentes, especialmente negros e periféricos, estão presos a uma realidade de descaso e desamparo pela precarização socioeconômica de suas famílias, pela má gestão da pandemia no Brasil e pelo desfinanciamento de políticas públicas essenciais de assistência social, educação e saúde.

Ali dormem e amanhecem todos os dias meninos e meninas que encontraram nas ruas, e em uns aos outros, o único lugar de abrigo. Suas histórias costumam se repetir: fugiram de casa afastados pela violência doméstica, perderam pais e mães durante a pandemia, evadiram-se das escolas pela falta de acompanhamento ou vendem balas e panos para sua mínima subsistência. Alguns poucos cometem até pequenos atos infracionais, delitos famélicos em plena luz do dia nas calçadas mais movimentadas de São Paulo, como se invisíveis fossem. E certamente o são para a maioria de nós, sociedade e Estado.

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Polícia detém suspeito de liderar grupo de menores de idade que promove assaltos na região da avenida Paulista, em São Paulo - Danilo Verpa - 8.abr.22/Folhapress

Contudo, mesmo ciente dessas questões, como aponta a própria reportagem ​("Polícia apreende crianças e adolescentes suspeitos de integrar gangue que age na Paulista") que originou a preocupante Primeira Página do último dia 9 de abril, este jornal escolhe retratar em sua página principal, pelo título e duas grandes fotos em destaque, a complexa realidade por um viés policialesco, menorista e estereotipado.

Uma escolha infeliz, descuidada e que pode ser considerada ilegal ao olharmos para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nas fotos utilizadas, apesar dos rostos estarem borrados, as crianças e os adolescentes ainda podem ser identificados por características como tamanho e formato do corpo e peças singulares de vestuário, o que é totalmente contrário aos dispositivos que garantem a preservação da imagem desses indivíduos (art. 17) e a sua privacidade (art. 100, V). E, em específico para adolescentes a quem se atribui suspeita de ato infracional, o ECA garante uma proteção maior da identidade (art. 143 e 144), sendo inclusive crime (art. 247) a sua divulgação.

Ainda, a exposição de crianças e adolescentes em posição de revista e "batida" policial promove a divulgação de sua imagem em situação vexatória, com constrangimento e humilhação, violando o art. 18 do ECA, pelo qual compete a todos, inclusive à imprensa, "velar pela dignidade da criança e do adolescente". O fato de a abordagem policial ter sido feita sem acompanhamento familiar ou do Conselho Tutelar aumenta ainda mais a sua vulnerabilidade.

A capa escolhida reforça, assim, uma visão equivocada de que adolescentes seriam os maiores responsáveis pela violência urbana, o que é um grande e perigoso mito. Na verdade, pelos dados oficiais de letalidade e segurança pública, as crianças e adolescentes são as maiores vítimas na nossa cidade e em nosso país, com uma média de 7.000 homicídios todos os anos.

Curiosamente, as fotos selecionadas ocupam a Primeira Página da Folha no mesmo dia da notícia sobre o falecimento do nosso estimado professor Dalmo Dallari, o mesmo que dedicou a vida aos direitos humanos e a uma sociedade mais justa. Aprendamos com ele, assim, o direito das crianças ao respeito, nome de seu célebre livro, e o de serem cuidadas por todos nós com prioridade absoluta.

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