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Lucas Carlos Lima

O terceiro front e o pós-guerra da Ucrânia

Possível acordo só virá com alinhamento jurídico

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Lucas Carlos Lima

Professor de direito internacional da UFMG, é coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Cortes e Tribunais Internacionais (CNPq/UFMG); foi advogado perante a Corte Internacional de Justiça no caso dos desarmamentos nucleares

"Continuar a guerra na Ucrânia é moralmente inaceitável, politicamente indefensável e militarmente absurdo", exortou recentemente o secretário-geral da ONU, António Guterres. Passados 40 dias do conflito, a guerra da Rússia contra a Ucrânia continua sendo batalhada em distintos fronts. Há o conflito no terreno, envolto em tragédia e cenas soturnas, em que um Estado tenta ocupar as cidades do outro à custa de vidas e dos contornos cívicos que outrora as mesmas possuíam. Há o conflito político e de narrativas, em que cada um dos lados alega e disputa as acusações em relação ao outro, as pretensões territoriais, os direitos das populações.

Mas há um terceiro front, menos observado, que é a batalha jurídica que ocorre no seio de organizações e instâncias internacionais e que terá de ser necessariamente manejado num momento ainda difícil de vislumbrar: o pós-guerra. Qualquer que seja o fim do conflito: da capitulação de Kiev ao recuo de Moscou (e outros cenários mais ou menos preocupantes), há em campo uma série de iniciativas que precisarão ser enfrentadas. Para o direito internacional, existem alguns pontos indisputáveis, os quais clamam algum tipo de resposta, presente ou futura:

a) Houve uma agressão —o mais severo uso da força na sociedade de Estados— e uma violação da Carta da ONU, reconhecida pela Assembleia Geral das Nações Unidas no dia 2 de março de 2022;

b) Há uma ordem da Corte Internacional de Justiça, o principal braço judiciário da ONU, ordenando a suspensão das atividades militares russas e afirmando que o uso da força por Vladimir Putin levanta questões jurídicas;

c) Há uma série de missões de investigação instauradas para apurar os fatos ocorridos na Ucrânia; a mais notável delas é a investigação em curso do Tribunal Penal Internacional, o ramo judiciário penal da comunidade internacional. Há substanciais indícios do cometimento de crimes de guerra e crimes contra a humanidade em virtude das ações contra civis;

d) Há esforços diplomáticos para a criação de um tribunal "ad hoc" (extraordinário) dedicado a julgar a agressão russa —uma proposta, no mínimo, controversa;

e) Estão em vigor sanções de maior ou menor envergadura, como suspensões de organizações internacionais —talvez uma das mais significativas dentre elas seja a suspensão da Rússia do Conselho da Europa, o órgão de direitos humanos do sistema europeu;

f) Não houve qualquer substancial reconhecimento da comunidade internacional para a independência ou legitimidade da região do Donbass —embora seja explicável porque não tenham sido invocados argumentos em nome do princípio da autodeterminação dos povos.

Todas as iniciativas acima foram estratégias da Ucrânia e de seus aliados para pressionar Moscou e tornar a Rússia um "outcast". Diante das regras existentes, a Ucrânia parece estar levando a melhor no terceiro front. Se o direito internacional parece pesar a balança rumo a um dos lados do conflito, existe um outro problema: a ausência de argumentações jurídicas sólidas oriundas do Kremlin ou daqueles que pretendem defendê-las. Um grupo de juristas russos ensaiou uma defesa da "intervenção por convite" para legitimar os atos, mas os limites da proporcionalidade necessários a esse tipo de conduta já abandonaram o campo há muito tempo. Ainda assim, é necessário construir uma saída que leve em consideração as diferentes populações que ocuparão no futuro o atual território ucraniano.

Há um complicador nesse cenário. Uma obrigação fundamental que emerge das normas internacionais é o dever de não reconhecimento de situação ilícitas oriundas de graves violações de regras internacionais.

Um acordo reconhecendo Crimeia, Lugansk e Donetsk como territórios russos provavelmente ouvirá vozes denunciantes do lado ocidental. Isso explica a razão do presidente Volodimir Zelenski reafirmar a "integridade territorial ucraniana" como um ponto de inflexão de suas negociações.

Enquanto as partes no conflito e a comunidade internacional não alinharem os pontos jurídicos de uma maneira convincente no terceiro front, um acordo coerente e aceitável não será vislumbrado. Infelizmente, haverá por muito tempo dificuldades no pós-guerra da Ucrânia com os problemas advindos do terceiro front. Em qualquer conflito, ele é o último a desaparecer.

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