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Alessa Camarinha e Fernanda Amim

Quem decide quem pode ou não ocupar a rua no Carnaval?

Festa é fenômeno cultural e social complexo, não depende de 'alvará'

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Alessa Camarinha

Musicista, cantora e ativista cultural, é idealizadora e diretora musical do Bloco Ritaleena (SP)

Fernanda Amim

Advogada, é mestre em direito e doutoranda em planejamento urbano e regional (UFRJ)

Estamos às vésperas de algo inédito na história do país: a realização de um Carnaval no mês de abril no Rio de Janeiro e em São Paulo. A data atípica ocorre porque ambas as cidades adiaram os desfiles das escolas de samba, enquanto "cancelaram" a festa de rua devido à situação epidemiológica que o país atravessava no início deste ano.

De festas a festivais, de estádios de futebol a bares e cultos lotados, cariocas e paulistas tiveram milhares de opções de encontros sem qualquer controle epidemiológico real. Essa situação fez com que alguns blocos e foliões fossem às ruas em fevereiro, no Rio de Janeiro e em menor escala em São Paulo, para reivindicar o direito à folia no que ficou conhecido como "o Carnaval que não aconteceu".

Agora, com o cenário pandêmico estável e os desfiles das escolas de samba já com data marcada, o Carnaval de rua ainda permanece "cancelado" aos olhos das prefeituras das duas cidades. A justificativa da pandemia foi substituída pela argumentação da ausência de tempo e de interesse do patrocinador para realizar a festa, como se fosse possível cancelar umas das principais manifestações culturais do país, de caráter espontâneo, livre e comunitário, com base em argumentos simplórios. Apesar disso, os blocos e foliões já anunciaram que vão às ruas de novo, mesmo com ameaças de repressões por parte do poder público. Essa tensão trouxe alguns questionamentos: afinal de contas, decidir sobre ter ou não Carnaval, ou sobre poder ou não realizar um bloco no espaço público, significa no fundo decidir quem pode ou não ocupar culturalmente as ruas da cidade. A quem cabe essa decisão?

O Carnaval é um fenômeno cultural e social complexo. Não depende de "alvará" e se manifesta de diversas formas nos territórios urbanos pelo país. É história, memória, construção de sentido de pertencimento, de identidade. É um direito cultural e o exercício da liberdade de expressão artística e de manifestação.

Além disso, a folia pode e deve ser vista de diversas perspectivas. Pois além de ser a festa que possibilita a formação do maior espaço de encontro social do Brasil, é também o responsável por parte da arrecadação fiscal das cidades. Trata-se de trabalho que movimenta uma grande cadeia produtiva, gerando parte da renda anual de diversas famílias. Todas essas dimensões mostram não só a complexidade mas a centralidade do Carnaval para o desenvolvimento econômico, social e cultural do nosso país. Deve-se, portanto, ser tratado pelo poder público com respeito e seriedade, independentemente do interesse comercial de empresas patrocinadoras.

Já passou da hora de o Estado apresentar uma política pública consistente que compreenda a complexidade do Carnaval, mas que parta daquilo que é a base e a essência da festa: a sua dimensão cultural. Pois o Carnaval trabalho, o Carnaval orçamento e o Carnaval turismo só existem pela forma de brincar o Carnaval —e essa forma, seja ela bloco, banda, bate-bola ou desfile, precisa ser apoiada e incentivada pelo poder público, que tem a obrigação de garantir os recursos e a infraestrutura urbana necessária para a realização da festa.

O não investimento em cultura gera diversas consequências. Ao olharmos para o "Carnaval que não aconteceu", veremos que a falta de apoio para a realização da festa pelo poder público não gerou o desaparecimento da manifestação carnavalesca de rua: apenas fez com que a cidade e a população sofressem mais impactos. A ausência do Estado, novamente em abril, só agravará essa situação.

Por tudo isso, fica evidente que quem cancela uma manifestação cultural é quem a produz: o segmento cultural. À prefeitura cabe gerar as condições estruturais, não reprimir. Ela não produz a expressão cultural: seu papel é meio, não fim.

Só pauta o Carnaval com base no interesse de empresa patrocinadora quem não entende nada de cultura, e só proíbe e ameaça a realização de uma manifestação cultural no espaço público em 2022 quem não entende nada de direito nem de democracia.

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