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Giordano Magri e Fernanda Penteado Balera

A velha receita está de volta à cracolândia

Seguir no caminho da repressão não reduzirá a vulnerabilidade dos usuários de drogas

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Giordano Magri

Doutorando pela FGV-Eaesp, é pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM-USP)

Fernanda Penteado Balera

Defensora pública do estado de São Paulo, é coordenadora do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos

Há meses esta Folha vem noticiando quase semanalmente sucessivas ações repressivas na região conhecida como cracolândia, em São Paulo. Nesta última quarta-feira (11), não foi diferente. Em nova ação da Polícia Civil e da Prefeitura de São Paulo, o fluxo de usuários de drogas da praça Princesa Isabel foi atacado e dispersado sob o pretexto de prender traficantes. O que ninguém explica é porque, depois de tantos "traficantes" presos, a situação só piora.

As intervenções da prefeitura e da polícia são problemáticas por diversos fatores. O primeiro deles é o custo. Estudo realizado pela Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas mostra que, entre 2017 e 2020, se somarmos os custos com materiais e pessoal utilizados pela Guarda Civil Metropolitana (GCM) na região, gastou-se mais do que o prejuízo que conseguiram impor ao tráfico. Nesta última ação, foram mais de 650 oficiais de segurança envolvidos, e agora outros 100 ficarão diariamente na praça para evitar que os usuários retornem. Quanto custam essas demonstrações inefetivas de força? E que outras regiões da cidade ficam inseguras em razão dessa estratégia?

As recentes ações também criam novas cenas de uso de drogas e espalham insegurança por todo o centro expandido. No fim do dia 11 havia cenas de uso na praça Marechal Deodoro, na praça Júlio Mesquita e em ruas da Santa Ifigênia. Segundo a própria prefeitura, a estratégia final seria a desocupação da Favela do Moinho, que tem mais de 25 anos de existência e abriga cerca de 500 famílias. Isso evidencia que há mais impactos negativos do que efeitos positivos.

Do ponto de vista social, a inação tem sido a regra. Assiste-se há anos ao fechamento de equipamentos e à desarticulação das equipes de saúde e assistência. Desde que o Programa Redenção foi criado, em 2017, a estratégia dos gestores da política —que são os mesmos até hoje e que quase não pisam no território— tem sido oferecer serviços distantes da região para tirar os usuários de lá. Na prática, a retirada dos serviços destinados às pessoas em situação de vulnerabilidade apenas agravou as condições de sobrevivência de todos que vivem na região. A prefeitura argumentou nesta Folha que a estratégia para o território é dispersar os usuários, sob a justificativa de que seria melhor oferecer tratamento a eles em grupos menores. Isso até poderia ser verdade se alternativas efetivas de fato existissem, mas a única oferta tem sido a violência. Nenhuma pessoa vai querer receber tratamento de quem a agride.

A Defensoria Pública tem questionado a legalidade das ações da prefeitura e, principalmente, seus efeitos na vida dos mais vulneráveis em ações judiciais que discutem o fechamento dos equipamentos, as remoções forçadas e os excessos praticados pela GCM. Em todas as ações, o pano de fundo é a falta de políticas públicas contínuas e eficientes de saúde, assistência social, moradia e trabalho. Nestas ausências, o que nunca falta é a repressão. Infelizmente, a inércia do Judiciário também estimula a agenda violenta da administração municipal.

O líder do governo na Câmara Municipal pautou às pressas, no mesmo dia 11, projeto de lei que pretende cercar com grades a praça Princesa Isabel. "Proteger a flora", em vez de cuidar das pessoas, é um bom símbolo do que a atual gestão tem feito: varrer as pessoas da vista. A repressão com abandono é uma receita para a cracolândia que já existe desde os anos 2000. E nunca deu certo.

Quantas "operações contra o tráfico" ainda veremos até que a questão seja vista como de saúde, não de polícia? Quanto ainda custarão as aventuras inócuas da prefeitura e da polícia? Até onde irão essas manifestações de violência contra as pessoas negras e pobres que vivem no centro?

Nunca houve receita fácil, mas seguir nesse caminho é voltar pelo menos duas décadas para trás. Ou a redução da vulnerabilidade dessas pessoas ganha centralidade nas intervenções públicas ou a prefeitura continuará jogando fora dinheiro e energia para agravar ainda mais a situação da qual é a responsável por resolver.

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