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Ana Trigo

Cracolândia, substantivo feminino

Em um espaço onde a maioria é homem, mulheres são ainda mais negligenciadas

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Ana Trigo

Jornalista, é mestra e doutora em ciência da religião (PUC-SP); pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da tese “Mulher é muito difícil – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo"

A cracolândia sempre foi um território de disputas políticas e midiáticas. Muitas foram e são as promessas para "acabar com a cracolândia", mas pouca efetividade se viu até o momento. No discurso governamental, a dependência química é tratada como um problema social e de saúde pública. Na prática, o tema tem se resumido às esferas policiais, que pouco atingem aqueles que estão ligados diretamente ao crime, mas que penalizam barbaramente dependentes químicos.

A ação deflagrada no último dia 11 de maio é apenas mais um entre muitos exemplos. Usuários de drogas são presos como traficantes. Nada é falado sobre o que está sendo feito para desmontar a rede que faz com que o crack chegue pronto à cracolândia, onde quer que ela esteja no momento.

Tratar a dependência química como crime, sem atacar o traficante de fato, é justificar as constantes ações policiais na cracolândia. A mudança constante dos programas (já tivemos Nova Luz, Braços Abertos, Redenção, Redenção fase 2 e Redenção fase 3) e o desmantelamento dos atendimentos municipais de saúde e assistência social na região, associada às operações policiais cada vez mais agressivas, provocam apenas o êxodo dos usuários de drogas para outras ruas da cidade.

A assistência social no Brasil está longe de ser uma política pública efetiva, um programa de governo. Está mais ligada ao assistencialismo de ocasião, como um pronto-socorro que não tem a preocupação com o tratamento ou a prevenção do problema. As ações deveriam ser interdisciplinares, inclusivas, preventivas. Mas, ao contrário, têm sido baseadas na violência e na exclusão. Violência essa que deixa a situação das mulheres usuárias de drogas mais difícil e, por que não dizer, mais degradante.

Em um espaço onde a maioria é homem, quase nada do atendimento público é pensado nelas. Mulheres que usam crack, principalmente se forem mães, são taxadas de negligentes, indiferentes e egoístas. Por serem tão julgadas, elas evitam buscar ajuda e acabam invisibilizadas nos números de atendimento. Até mesmo as poucas pesquisas quantitativas realizadas contribuem para a subnotificação, corroborando o número menor de vagas de atendimento para as mulheres.

Elas só passam a ser notadas quando ficam grávidas ou quando são presas, sempre julgadas pelo comportamento e nunca tratadas como pessoas que precisam de atenção e cuidados especiais para lutar contra a dependência química e quebrar o ciclo de violência. Quantas são as vagas disponíveis em albergues ou acolhimento que permitam morar com suas filhas e filhos?

Com número subnotificado e sem políticas públicas pensadas nelas, as dependentes químicas experienciam diariamente a violência, a humilhação e a vergonha típicas impostas pela situação de rua. Some-se a isso a escassez de coisas básicas, como itens de higiene, absorventes e até mesmo dificuldade de acesso a banheiros na região, o que piora a sensação de não reconhecimento como seres humanos. A cracolândia será sempre um substantivo feminino.

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