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Luiz Guilherme Piva

Fome de quê?

Não frequento redes sociais, mas sei que ensinam o que fazer, vestir e pensar

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Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de “Ladrilhadores e Semeadores” (Editora 34) e “A Miséria da Economia e da Política” (Manole)

Elas acreditam que, ao morrer, levam suas riquezas e que o "outro mundo" tem prazeres como os da vida terrena. Por isso dedicam-se à conservação dos corpos: para lá receber, em perfeita forma, seu espírito de volta. São crenças do Império Egípcio (3200 a.C.-700 a.C.), mas parece a descrição de pessoas milionárias e obcecadas por alimentação, exercícios e botox —que talvez sejam egípcios reencarnados e agraciados com a confirmação de sua fé, não sei. Sei que elas constroem e habitam as atuais pirâmides (chamadas de redes sociais) e ditam boa parte do nosso modo de vida.

Não frequento redes sociais, mas não escapo à exposição a elas —como jamais fui ao Egito e esbarro sempre com as pirâmides. Confesso não entender sua linguagem (a última comparação, vai: tampouco os hieróglifos), mas sei que lá nos ensinam tudo: o que fazer, vestir e pensar.

Pode ser uma pena que grande parte da inteligência moderna esteja ocupada em produzir tecnologia sofisticada voltada quase somente a construir e/ou reproduzir mais e melhor essas pirâmides —e a outra parte, a usá-las. Contudo, é isso o que gera pesquisa e riqueza atualmente (contando ou não com o meu e o seu "like").

É chato dizer, mas, segundo o estudo "O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo" (2021), produzido pela ONU, há 811 milhões de pessoas passando fome no planeta, a maior parte na Ásia (418 milhões) e na África (282 milhões, ou 21% da população do continente). A América Latina e o Caribe tampouco fazem bonito: têm cerca de 60 milhões de famintos.

Quanto à insegurança alimentar (acesso inadequado a alimentação), são 2,3 bilhões de pessoas (30% da população mundial). E mais: há 145 milhões de crianças abaixo de 5 anos com desnutrição crônica e 45 milhões com desnutrição aguda —a grande maioria na África e na Ásia. O Brasil também fica muito feio na foto: segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Pensan), 55% dos domicílios padeciam de insegurança alimentar em 2020, frente a 37% em 2018.

Com inflação, estagnação e insuficiência de políticas públicas de distribuição de renda, deduz-se que as filas e brigas por lixos e ossos, tais como as que vêm ocorrendo em algumas cidades recentemente, devam aumentar, sempre flagradas por vídeos e fotos que rodarão as redes sociais —o que é muito importante, embora com interrupções frequentes de anúncios.

Claro, não cabe aos adeptos das redes resolver tais questões. É do setor público a responsabilidade por enfrentá-las. Minha chatice ao citar esses números é uma tentativa de chamar atenção para o óbvio e grave tema da enorme desigualdade.

Não custa cutucar e lembrar que não é condenável desfrutar de conforto material (obtido honestamente), saúde e aparência, mas que, havendo ou não vida depois da morte —para ao menos 2,3 bilhões de pessoas a dúvida é se há vida antes da morte—, isso pouco valerá (perdoem-me os egípcios) no que quer que seja (ou não seja) o "outro mundo". Menos ainda com milhões à volta morrendo de fome.

Para muitos de nós isso já é difícil de assimilar. Mas acho que será impossível, daqui a milhares de anos, quando um novo Champollion decifrar a língua das redes, alguém entender a sociedade em que vivemos.

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