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Joaquim Falcão

O sonho do brasileiro

Direito de propriedade deveria ser pauta prioritária dos candidatos

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Joaquim Falcão

Membro da Academia Brasileira de Letras, professor de direito constitucional e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais

Qual o mais importante sonho do brasileiro? Ter um imóvel. É o sonho de 87% dos brasileiros, diz pesquisa recente da startup QuintoAndar e do Instituto Datafolha. Valorizam mais a casa própria do que filhos, religião e estabilidade. É o direito de propriedade individual.

Em 1991, o regime comunista caía. Leningrado trocava o nome para São Petersburgo. Eu estava lá em reunião profissional. Queria entender por que os russos preferiam Boris Ieltsin a Mikhail Gorbatchov, que o Ocidente tanto admirava.

O professor e escritor Joaquim Falcão, membro da Academia Brasileira de Letras

Depois de shots de vodca, arenque e borsch com creme azedo, um engenheiro nuclear russo me confidenciou no jantar. Em voz baixa. "Gorbatchov, como presidente da União Soviética, prometeu que poderíamos comprar nossas vivendas. E, depois de seis anos, não cumpriu."

Espantei-me. Depois de mais de 70 anos de comunismo, o sonho da propriedade individual ainda era capaz de derrubar regimes.

Pesquisas como a da Habitat Brasil apontam na mesma direção: 98% reportaram melhora na autoestima na simples reforma da casa, em mutirão, mesmo sem propriedade; e 89% perceberam, inclusive, melhoras em sintomas de doenças respiratórias.

A inverdade do capitalismo neoliberal tropical é pretender se estruturar a partir do direito constitucional da propriedade individual sem viabilizar casa própria para a maioria dos brasileiros.

Somos um dos países mais urbanos do mundo. Segundo o urbanista Washington Fajardo, cerca de 80%. Nossas metrópoles crescem pelas franjas de favelas, condomínios ilegais, mocambos, moradias em áreas de risco.

Urbanização e industrialização aceleraram entre 1918 e 1980, segundo o colunista Samuel Pessôa, aqui mesmo nesta Folha, deixando graves consequências sociais. Até hoje.

Mais de 30% dos brasileiros não têm casa própria. E, dos que têm, não se sabe se são legais, ilegais, ocupações e tanto mais.

Tentamos com o Sistema Financeiro da Habitação, em 1965, e com o Minha Casa, Minha Vida, em 2009, mitigar as consequências sociais. Falhamos. Por quê?

As soluções são, na maioria, pensadas como equações financeiras. Quem precisa de casa não tem emprego e renda para pagá-la. A escala da pobreza não cabe na elegante e anódina equação.

Para a política financeira ortodoxa, os sem casa são apenas demandas futuras. Mas não dá para esperar. Cortar orçamento. Equilibrar o déficit fiscal. Controlar a inflação. Aumentar juros. Criar poupança. Atrair investimentos. Abrir empresas. Gerar empregos. Estimular competição. Aumentar salários. Criar mercado creditício com garantias. Não há tempo. O sonho acorda no niilismo das metrópoles.

Espanta que o direito de propriedade não seja pauta prioritária para candidatos destas eleições.

O sonho do eleitor não é unir Alckmin a Lula. Bolsonaro aos militares. Ciro Gomes a Simone Tebet. Nem temos sistema real de partidos políticos. Apenas partidos eleitorais. Tão sólidos que se desmancham no dia seguinte da urna.

O presidente Bolsonaro tem balaio de auxílios. Ótimo. Lula combate fome e desemprego. Ótimo. Ciro promete choque de capitalismo. Ótimo. Mas o sonho é palpável, físico, feito de quarto, sala, banheiro e cozinha.

Os eleitores estão ansiosos para que a democracia resolva seus problemas reais.

O risco é a ansiedade individual se transformar em pânico social. Pânico urbano da violência, miséria, corrupção política, milícias. Risco da descrença nos políticos. Vale tudo. Vale quem dá mais a curto prazo.

Talvez pudéssemos tentar um Pacto pela Moradia Popular. Pacto de Estado. Dos três Poderes entre si. Com sociedade, mercado, igrejas, todos. Federal, estadual e municipal.

Não haveria única solução estatal. Já existem múltiplas e boas experiências locais. Governamentais e sociais. Convergentes nas diferenças. Cumpre identificá-las e multiplicá-las. A aliança política que o Brasil precisa é esta. Múltipla e sincrética ao mesmo tempo.

Quando Sergio Moro me convidou para propor projetos para o Brasil, com muita honra, aceitei. Quando Márcio Thomaz Bastos, do PT, me convidou para pensar o Conselho Nacional de Justiça, também. Focalizei agora o direito de propriedade individual. Estrutural para os demais direitos humanos.

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