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Carolina Ricardo e Bruno Langeani

Os corpos da Vila Cruzeiro e a polícia sem freios

Para além da ilegalidade explícita, mortes impedem trabalho investigativo aprofundado

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Carolina Ricardo

Diretora-executiva do Instituto Sou da Paz

Bruno Langeani

Mestre em administração pública e políticas públicas pela Universidade de York (Reino Unido), é gerente do Instituto Sou da Paz

Vinte e três mortos, ao menos 100 mil moradores afetados e nenhum mandado de prisão para suspeitos do Comando Vermelho cumprido. Segundo as próprias autoridades fluminenses, a operação realizada na última terça-feira (24) na Vila Cruzeiro, zona norte do Rio de Janeiro, com participação das polícias Militar e Rodoviária Federal, foi um fracasso.

O que foi apresentado como resultado positivo —13 fuzis, quatro pistolas e drogas— parece insuficiente frente às mortes e impacto social para a comunidade. Apenas para comparar com outra ação da polícia contra a mesma facção, trazemos o exemplo da família de colecionadores de armas registradas no Exército e presa em janeiro sob suspeita de fornecer armas ao Comando Vermelho. Sem recorrer a helicóptero, veículo blindado ou disparar um único tiro, a Polícia Civil apreendeu o dobro de fuzis (26) e 11 mil munições —o equivalente a 10% de toda a apreensão do estado no ano de 2021.

A gestão do governador Cláudio Castro (PL), que, com Jacarezinho em maio acumula duas das mais sangrentas chacinas policiais da história do Rio, é um aprofundamento descontrolado da gestão Wilson Witzel. Esta, além de incentivos simbólicos como "tiro na cabecinha", tomou medidas concretas que reduziram a supervisão civil-política sobre as polícias e diminuíram o controle sobre o uso da força letal. A Secretaria de Segurança foi extinta, retirando uma importante esfera de coordenação não policial e supervisão do trabalho. Metas de redução de mortes pela polícia foram retiradas do programa de bonificação dos policiais.

Todas essas mudanças fizeram com que a polícia se sentisse empoderada o suficiente para ignorar a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 635, que estabeleceu limitações e critérios para operações policiais, como por exemplo proibir disparos usando helicópteros, dado o risco de vitimização de civis, ou o uso de escolas e outros prédios públicos como bases em operação.

Referências internacionais apontam alguns parâmetros para indicar abuso da força letal e da arma de fogo por policiais. Ter mais mortos que feridos em ações policiais é um deles; a proporção entre suspeitos e policiais mortos também. Acima de 15 suspeitos mortos por policial vitimado já é indicativo de excesso. Em 2021, essa proporção na polícia do Rio de Janeiro foi de 135! Ao juntarmos esses dados com os relatos que chegam de testemunhas e do IML mostrando lesões com faca e disparos à queima-roupa, fazem gritar as evidências de execuções.

Ao escolher matar suspeitos feridos e rendidos, para além da ilegalidade explícita, a polícia abre mão de obter informações sobre a hierarquia das facções, cadeia de fornecedores das drogas, armas e também de descobrir os agentes públicos que recebem propina para fazer vista grossa às atividades ilícitas. Suspeitos levam para o cemitério informações capazes de gerar impactos mais contundentes em investigações.

Sem contar o perfil das vítimas desse tipo de operação: corpos negros e jovens, com consequências gravíssimas para os moradores das regiões. Além das vidas perdidas, há o fechamento de escolas, perda de emprego por faltas, fechamento de comércio —impactos pesados para uma população já extremamente vulnerabilizada. Além, é claro, da perda de qualquer fio de credibilidade e confiança no trabalho policial.

As operações podem, sim, ser necessárias, mas de forma excepcional, não como regra. Alocar recursos para tais operações significa menos polícia fazendo o patrulhamento cotidiano e gera forte impacto negativo para o território e seus moradores.

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