Tenho feito uma provocação com as pessoas com quem converso: pense rápido, sem filtro, qual a primeira palavra que vem à sua cabeça se te pergunto qual é a vítima de estupro no Brasil? Quase todos me respondem o que você, leitor, provavelmente pensou: a mulher.
O problema é que a resposta está errada. O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2021, aponta que 60,6% de todos os estupros registrados no país foram contra meninas de menos de 13 anos de idade. Ora, se esse dado existe, por que não pensamos em meninas?
Posso elencar aqui uma série de razões pelas quais mulheres, não meninas, estão no nosso registro mental. Mas, sem dúvida nenhuma, a principal delas é que os movimentos feministas, por meio da sociedade civil organizada, colocaram a violência contra a mulher na pauta da sociedade, o que foi de fundamental importância para o seu enfrentamento.
Sei disso porque, quando fui delegada de polícia e atuei na Delegacia de Defesa da Mulher no estado de São Paulo, há mais de 30 anos, essa violência não tinha o tratamento que lhe é dado hoje. Nem pela legislação (imagine que não havia lei específica para violência doméstica); nem pela política pública (como a existência da Casa da Mulher Brasileira); nem pelas empresas (que de forma alguma associavam sua marca a esta causa!); e tampouco pelas mídias em geral, que falavam eventualmente sobre o assunto.
Evoluímos muito, e hoje temos leis como a Maria da Penha, os crimes de feminicídio, de importunação sexual, de violência política contra a mulher e outras tantas ações não só de enfrentamento da violência como de busca por igualdade entre homens e mulheres, como é o caso da lei de cotas para mulheres candidatas. Além, é claro, de que toda empresa hoje faz questão de ter seu nome associado a alguma ação de fortalecimento da mulher.
Tudo isso porque conseguimos tirar essa violência (que era constrangedora para a vítima e considerada algo da esfera privada e doméstica) da invisibilidade. Imagine se alguma mulher "rica" iria à delegacia denunciar uma violência! Isso era "coisa de periferia". O fato é que violência contra a mulher continua a ser um grande desafio para a nossa sociedade, mas estamos em um caminho importante de mudança de cultura.
O Instituto Liberta, junto com muitas outras organizações, está tentando fazer hoje com a violência sexual contra crianças e adolescentes exatamente o que foi feito com a violência contra a mulher: tirar da invisibilidade para iniciar um processo de enfrentamento.
Voltando à questão inicial, sobre quem é a vítima de estupro no Brasil, algumas pessoas me falam: "Ah, mas mulher e menina são a mesma coisa". Não, não são! Quando o assunto é violência contra a mulher, fala-se basicamente de enfrentamentos ligados à repressão desses crimes —basta ver as leis que citei.
Quando a sociedade finalmente enxergar que a maior parte da violência sexual é contra meninas, iremos começar a falar de políticas públicas de prevenção.
Vamos começar a falar de educação, de escola e de como ensinar crianças a se protegerem dessas violências e adolescentes a construírem relações sexuais saudáveis. É para isso que vai servir a primeira passeata virtual do mundo! Para romper com o silêncio, com o constrangimento e encarar que o problema existe —porque este é o primeiro passo para que ele acabe.
Bom, mas como ninguém sabe o que é uma passeata virtual, gravamos uma simulação de como ela sairá no dia 18 de maio. É só entrar no site www.agoravcsabe.com.br para ver e entender que a passeata não é sobre a história de alguém, mas sobre a força do coletivo. Cada pessoa que gravar passará apenas uma vez pela tela, junto com outros rostos e vozes, falando o grito da passeata: "Violência sexual contra crianças e adolescentes é uma realidade. Eu fui vítima. E agora você sabe".
Se você tem dúvida se já sofreu alguma violência sexual, clique no "Já fui vítima?". Talvez se surpreenda ao perceber que já foi vítima e não tinha se dado conta; isso porque nossa sociedade minimiza as violências sutis. Nem toda violência sexual é traumática, mas toda violência sexual é crime e é inadmissível! Venha nos ajudar a mudar essa realidade. Agora você sabe.
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