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Diego Pereira

Planeta fome

Ondas de calor na Índia e guerra na Ucrânia traçam cenário sombrio

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Diego Pereira

Procurador federal na Advocacia-Geral da União (AGU), é autor de ‘Vidas Interrompidas pelo Mar de Lama’ (Lumen Juris)

Setenta anos depois, o conhecido diálogo estabelecido por Elza Soares e Ary Barroso parece assumir dimensão global. Quando a cantora, ao ser indagada sobre sua procedência, responde que veio do "planeta fome", aponta o seu lugar social: mulher, negra, mãe solteira, faminta.

Muita coisa mudou da década de 1950 para cá: elevou-se o nível de produção de alimentos em grande escala, programas sociais se institucionalizaram pelas nações mundo afora e a tecnologia ajudou a diminuir o fosso que separava desnutridos de saudáveis.

Com a Covid-19, a guerra na Ucrânia e agora uma assustadora onda de calor na Índia e no Paquistão, a fala de Elza Soares assume metonímia que designa previsibilidade de escassez de alimentos no planeta.

Entre os fatores anteriormente citados, o único previsível pela ciência é justamente a possibilidade de aumento de temperatura e ondas de calor que ultrapassam 40ºC em diversos lugares do planeta. A Índia e o Paquistão registraram nas últimas semanas índices acima dos 50ºC, colapsando o fornecimento de energia e água da região e, sobretudo, prejudicando as plantações de trigo.

O trigo assume importante papel na formação da civilização humana ao possibilitar maior ingestão de energia com menor esforço na busca de alimentos, tornando-se o "pão nosso de cada dia" que domestica o homo sapiens.

Ressalta-se o impacto dessa onda de calor sobre a produção de trigo justamente porque a Índia é o segundo maior produtor do mundo, atrás somente da China; porque o planeta experimenta a ausência de importante fornecedor desse cereal, que é a Ucrânia; e pela característica desse plantio, sensível à instabilidade climática.

O último relatório da FAO, Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, divulgado em meados de 2021, portanto sem levar em consideração a guerra da Ucrânia e a limitação na distribuição de trigo pela Índia, confirmava a inclusão de 30% da população mundial em estado de insegurança alimentar.

A própria ONU reconhece que está comprometida a meta de acabar com a fome no mundo até 2030, objetivo do desenvolvimento sustentável de uma de suas Agenda. Já no Brasil, o Relatório Luz aponta que a pandemia colocou 60% da população em insegurança alimentar —ou seja, 113 milhões de brasileiras e brasileiros (pessoas que não sabem o que vão comer no outro dia ou então que se veem obrigadas a pular alguma refeição por falta de alimento).

Dois pontos merecem atenção nesse contexto: o primeiro sobre o alerta dos cientistas acerca das ondas de calor na Índia e sua correlação direta com o aumento da temperatura no planeta (aquecimento global ou mudança climática). O segundo é que, assim como Elza Soares, a fome tem cara, cor, lugar social e gênero.

Acertam Noam Chomsky e Robert Pollin ao afirmarem que os maiores desafios atuais da humanidade são as guerras ao redor do mundo e a crise climática. Afinal, ambas levam à própria negação de civilização como ideia de estágio avançado de desenvolvimento humano-social.

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