Descrição de chapéu
Becky S. Korich

Relações mal agasalhadas

Gente morrendo de frio e nós incomodados quando o casaco não combina com a calça

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Becky S. Korich

Advogada, dramaturga e cronista do blog www.quarentenando.com

O frio chegou cedo neste ano, bateu recordes de temperaturas mínimas para o mês de maio. Por mais frio que esteja, a sensação é de déjà-vu, já que estamos há algum tempo com as pontas dos dedos congeladas. Estamos distantes uns dos outros e esfriamos nossos corpos. Parte por sequelas deixadas pela Covid —que nos fez descobrir e legitimar as piores preguiças humanas, demasiadamente humanas—, parte pela individualidade que a "vida moderna" nos impõe.

Enquanto tem gente morrendo de frio, nos incomodamos quando o casaco não combina com a calça. Passar por pessoas acampando na rua como se isso fosse normal é a frieza-mor. "Mas não tem jeito", a gente pensa, "para isso mudar, muita coisa teria que mudar". E seguimos em frente, tirando de dentro de nós uma insensibilidade que nos defende, que nos anestesia da crueza dessa realidade tão polarizada, e a massa polar da indiferença nos atinge em cheio.

E o frio é mais frio do que parece: tem a sensação térmica, que geralmente é mais baixa do que a temperatura real. Nunca entendi bem esse conceito, talvez porque eu não tenha me exposto a um frio tão intenso e, nas temperaturas mais baixas que suportei, sabia que existia um abrigo em algum canto quente da vida para me proteger. Os ventos gelados da solidão e do desamparo, esses são cortantes.

A física nos ensina que a troca de calor acontece através do contato de dois corpos. O mais quente aquece, o mais frio recebe, e assim se dá o equilíbrio térmico. Acontece que estamos todos igualmente mornos, com a mesma temperatura inexpressiva e apática, desacostumados a praticar a intimidade, o afeto, as entregas. E acabamos nos acomodando nas relações-não-relações, incapazes de transmitir energia e calor.

Agora que o frio se impõe, talvez seja a hora de re-unir (com hífen mesmo) duas ou três pessoas diante de uma fogueira, para começar a descongelar a ponta dos nossos dedos.

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