Descrição de chapéu
Marcelo Issa, Ana Paula G. Carvalho e Filippe Lizardo

Transparência e dinheiro público sob risco

Projetos no Congresso fragilizam fiscalização financeira de partidos políticos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Marcelo Issa

Cientista político e advogado, é diretor-executivo do Transparência Partidária

Ana Paula Giamarusti Carvalho

Advogada, mestra em direito político-eleitoral e pesquisadora do Transparência Partidária

Filippe Lizardo

Professor de direito eleitoral, mestre e doutorando em direito

Nos últimos anos, o Congresso debate propostas que, a pretexto de assegurar a autonomia dos partidos políticos, procuram flexibilizar suas obrigações em relação à aplicação de recursos públicos e dificultar a identificação de irregularidades.

Desde 2019, por exemplo, insiste-se em acabar com o sistema eletrônico implementado no ano anterior pela Justiça Eleitoral para prestação das contas partidárias. A ferramenta é fundamental para aprimorar a auditoria das crescentes somas de dinheiro público transferido às legendas, conferindo mais transparência a essas movimentações. No ano passado, o projeto de um novo Código Eleitoral retomou a investida, avançou na Câmara e, atualmente, está no Senado.

Abertura do ano legislativo no Congresso Nacional - Pedro Ladeira - 2.fev.22/Folhapress

Como a proposta é muito abrangente e as atenções estão cada vez mais voltadas às eleições, surge agora o projeto de lei 700/2022, do senador Izalci Lucas (PSDB-DF), que centra fogo apenas nas prestações de contas para "flexibilizá-las".

Mas o projeto, na prática, inviabiliza a efetiva fiscalização dessas contas, que ficaria restrita a aspectos meramente formais, retirando da Justiça Eleitoral a prerrogativa de requisitar documentos para comprovar a prestação de serviços ou de verificar se os gastos têm pertinência com atividades de caráter político-partidário.

O projeto também repete a tentativa de eliminar o sistema eletrônico de prestação de contas e ainda impede que os técnicos da Justiça Eleitoral consultem informações sobre prestadores de serviços em bases de dados que não estejam disponíveis ao público. O acesso a dados da Receita Federal e de outros órgãos de controle é uma das principais diligências para aferir a regularidade das contratações declaradas por partidos e candidatos.

O texto traz ainda disposições que causam espécie, como proibir que a Justiça Eleitoral aponte indícios de irregularidades em gasto com fornecedor contratado anteriormente por órgão da administração pública para prestar serviço semelhante. Ora, caso algum dirigente partidário inescrupuloso queira desviar recursos públicos, basta que se acerte com empresa ou pessoa física que já tenha prestado o serviço a órgão público e não haverá qualquer controle dessa contratação. Um verdadeiro absurdo.

Nessa linha, há ainda um belo salvo-conduto para qualquer contratação supostamente voltada à participação política das mulheres. Para tanto, bastaria contratar pessoa física ou jurídica para prestar serviço exclusivamente à Secretaria da Mulher, mediante solicitação da responsável, e não se poderia questionar sua pertinência ou regularidade.

Assim como o projeto de novo Código Eleitoral, a proposta atribui status meramente administrativo às prestações de contas partidárias. Desde 2009, o procedimento tem natureza jurisdicional e, por isso, os respectivos processos são submetidos ao trânsito em julgado. Antes, algumas siglas ingressavam com reiterados pedidos de reconsideração que impediam o cumprimento das penalidades. A alteração permitiria ainda apresentar questionamentos em doses homeopáticas, facilitando a prescrição das contas.

O trabalho da Justiça Eleitoral, embora precise ser aprimorado, consegue identificar inúmeros e recorrentes desvios. Basta consultar os acórdãos para constatar irregularidades, como serviços cuja prestação não é comprovada, realização de benfeitorias em imóveis de dirigentes partidários, contratação de empresas pertencentes a filiados ou familiares de dirigentes, aquisição de produtos com sobrepreço ou que não se relacionam com as finalidades partidárias. Hoje, essas irregularidades levam à devolução de milhões de reais todos os anos aos cofres públicos.

Os partidos políticos são peças-chave para o exercício da cidadania e, no Brasil, são custeados fundamentalmente por fundos públicos. Só neste ano serão quase R$ 6 bilhões. A Constituição determina que a Justiça Eleitoral fiscalize a aplicação desse dinheiro. Aprovadas como estão, propostas como essas haveriam de ser questionadas por transformar em verdadeira peça de ficção o comando constitucional.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.