"Você suportaria ficar mais um pouquinho?", indaga a juíza Joana Zimmer, então na comarca de Tijucas (SC) à criança de 11 anos grávida de sete meses, vítima de estupro.
Na audiência, em vídeo divulgado pelo The Intercept Brasil, a magistrada e a promotora Mirela Dutra Alberton tentam persuadir a menina a levar a termo a gravidez e entregar o bebê à doação.
A ofensiva —além de cruel, ilegal, posto se tratar de aborto autorizado pela legislação— expõe o obscurantismo persistente em círculos judiciais e médicos no país. Foi o cúmulo de uma sequência de violações de direitos a que a vítima foi submetida por quem, por ofício, deveria protegê-la.
Na forma e no conteúdo, a audiência revela uma série de desmandos. Ao persuadir a criança a desistir de interromper a gravidez, os integrantes do sistema de Justiça negaram-lhe um direito assegurado no país desde 1940.
Pela legislação brasileira, o aborto é autorizado nas hipóteses de gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher e, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, anencefalia do feto.
Não bastasse a abordagem medieval da juíza e da promotora, que viola o atendimento humanizado previsto pela lei 12.845, de 2013, a criança estava mantida em um abrigo havia mais de um mês.
Embora norma técnica do Ministério da Saúde recomende que o aborto, em caso de estupro, ocorra dentro de "20 semanas da idade gestacional", o documento, segundo estudiosos, não deve restringir a aplicação da lei, que não estabelece um limite temporal.
A menina nem sequer precisaria ser submetida a audiência judicial para autorizar o procedimento, bastando o seu consentimento e o de sua responsável legal.
Hospitais, ademais, frequentemente rejeitam a realização do aborto legal, ou exigem documentos desnecessários, como boletim de ocorrência. Menos da metade dos hospitais indicados pelo governo para o procedimento de fato o fazem, segundo dados de 2019.
A obstrução de direitos por parte do Judiciário e de unidades de saúde revela que não basta a lei —a mudança da cultura institucional e a punição de violações são igualmente fundamentais.
Compreende-se que muitos tenham objeções morais ou religiosas ao aborto, mas nada lhes autoriza a impor suas convicções ao restante da sociedade e ao arrepio da legislação vigente.
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