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Lara Ramos, Leda Gitahy e Guilherme Figueiredo

Freio de arrumação?

Mortes de Bruno e Dom, entre outras, mostram que efeito da pandemia foi efêmero

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Lara Ramos

Unicamp

Leda Gitahy

Unicamp

Guilherme Figueiredo

Universidade do Estado do Amazonas (UEA)

Luto por Dom Phillips,
Bruno Pereira e José Francisco Lopes

Em maio de 2020, no início da pandemia de Covid-19, o compositor e escritor Nei Lopes distinguia isolamento de solidão no texto "Na Companhia dos Orixás". Graças às suas crenças espirituais e à sua família, não podia se queixar de solidão durante a quarentena e imaginava o momento que enfrentávamos como um "freio de arrumação, como aquele dos ônibus aqui da periferia".

Foi um fôlego de esperança. A humanidade retomando a conexão com a vida, freando o ônibus desgovernado para reencontrarmos o nosso lugar na natureza. Na mídia, as notícias se multiplicavam: "Cisnes e peixes voltam aos canais de Veneza, patos à Roma e golfinhos à Sardenha". Filósofos e pensadores escrevendo sobre a existência humana.

O choque dos assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira, somado ao de tantos outros, como o de José Francisco Lopes, mostram que o freio da pandemia não foi suficiente. "O assassinato de Pereira e Phillips constitui um crime político, poiss ambos eram defensores dos direitos humanos", pontuou em nota a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). José Francisco Lopes, quilombola da comunidade de Cedro, no Maranhão, foi vítima de atentado em sua residência, no dia 8 de janeiro de 2022, por sua luta contra latifundiários. Setores poderosos negam e reforçam a morte, sabotando os freios de uma sociedade na qual, segundo Ailton Krenak, "a vida não é útil".

Nos últimos dez anos tivemos 409 assassinatos de defensores dos direitos humanos, envolvendo processos minerários, queimadas, desmatamento e disputas por terra e água. Representantes de povos e comunidades tradicionais, lideranças comunitárias e seus aliados. Movimentos bruscos, portanto, sentidos tanto com a pandemia quanto nos territórios tradicionais, não estão sendo suficientes para frear "a boiada" que avança acelerada.

Mais de 60 anos depois da década conhecida como o "renascimento do ambientalismo", reformas foram feitas por atores da sociedade civil, da academia, governamentais e internacionais. Temos no Brasil um arcabouço de governança que engloba agentes estratégicos para prevenir movimentos bruscos e garantir a proteção da vida, como a Funai (Fundação Nacional do Índio), o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). A partir da atuação do atual motorista sabotador, essas estruturas estão sendo desmontadas e desarticuladas.

O Brasil se destaca na força e capilaridade das redes de solidariedade e afeto, pela atuação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), pela Univaja e muitas outras. Essas redes, a partir de múltiplos movimentos e ações, defendem e tecem a vida.

É fundamental tecer diálogos entre esses atores. O diálogo exige fôlego, mas é a fonte dos ventos da esperança. Como destacado em "Filosofias Africanas - uma introdução", de Nei Lopes e Luiz Antonio Simas: "Ninguém dança sozinho, mas com a comunidade ou na presença dela; e nenhuma reflexão ou decisão nasce ou se faz, senão em conjunto".

Neste luto por companheiros assassinados, nos inspiramos no exemplo de suas vidas. Eles continuam conosco como os encantados e os orixás. Este é um momento de esperança e resiliência. Precisamos permanecer vivos e tecer juntas e juntos movimentos e pausas.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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