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Alessandra Bastos

O Brasil na contramão

Regulamentação dos cigarros eletrônicos traria segurança a consumidores

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Alessandra Bastos

Farmacêutica, é consultora da BAT Brasil (British American Tobacco, ex-Souza Cruz) e ex-diretora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)

O Brasil está à beira de uma crise de saúde pública sem precedentes. O país observa o crescimento desenfreado do consumo de cigarros eletrônicos, inexistentes até poucos anos atrás e proibidos desde 2009 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas que podem ser facilmente encontrados e adquiridos em bares, barracas de camelôs, tabacarias, sites, redes sociais, com vendedores ambulantes e até em aplicativos de entrega.

Esses dispositivos estão amplamente disseminados, pois existe uma demanda legítima por alternativas de menor risco à saúde do que os cigarros tradicionais. Mas a população tem sido desinformada: muitos não sabem que esses produtos contêm nicotina, outros acreditam que os cigarros eletrônicos fazem mais mal à saúde do que os cigarros tradicionais. O pior é que ninguém sabe ao certo o que há dentro de cada dispositivo, o que coloca em risco a saúde e a vida de milhões de pessoas.

O levantamento mais recente é o Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis em Tempos de Pandemia (Covitel), pesquisa não presencial realizada pela organização global de saúde pública Vital Strategies em conjunto com a Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Entre outras coisas, a pesquisa investigou a utilização do produto no Brasil. Os dados mostram que 20% dos entrevistados entre 18 e 24 anos usam cigarros eletrônicos regularmente. Considerando o total da população, o índice é de 10,1% entre homens e 4,8% entre as mulheres.

O Instituto Ipec Inteligência também vem coletando dados a respeito do tema há alguns anos. Enquanto em 2020 o número de consumidores de vaporizadores e produtos de tabaco aquecido no Brasil era estimado em 1 milhão de pessoas, em 2021 ultrapassou 2 milhões. A incidência na população era de 0,3%, em 2018 e, em 2021, saltou para 1,3%. A percepção é que esse número seja maior, ainda que estejamos falando de um mercado completamente ilegal. Ou seja, apesar de milhões de cigarros eletrônicos estarem em circulação no Brasil, não há qualquer controle sanitário, recolhimento de impostos e o consumidor não pode adquirir produtos regulamentados, capazes de garantir maior segurança pois seguiriam os critérios estabelecidos pela agência reguladora.

Os dados acima demonstram que a estratégia de proibição, tomada em 2009 pelo princípio da precaução, não tem funcionado, pois onde há demanda sempre haverá oferta. Enquanto a opção for pela não regulamentação, esse mercado continuará sendo atendido pelo contrabando, que oferece a possibilidade de consumo sem qualquer controle —inclusive por quem não poderia adquirir esses produtos, como os menores de 18 anos. Manter a proibição não resolve. Apenas fará com que esse problema persista e aumente.

Sem talvez se dar conta disso e muitas vezes alardeando informações equivocadas, temos visto diversas reportagens na imprensa com especialistas da área da saúde e até mesmo técnicos da Anvisa advogando pela manutenção da proibição do produto no Brasil. Fechar os olhos para a situação atual e fingir que ela não existe é a saída mais fácil. Afinal, como sabemos, para todo problema complexo existe uma solução simples e errada.

A saída mais trabalhosa —e correta— seria regulamentar o produto no Brasil, assim como já fizeram mais de 80 países em todo o mundo, como Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Japão e diversos membros da União Europeia. Esses países não tomaram essa decisão à toa. Diversas pesquisas internacionais mostram que, pelo simples fato de não haver combustão quando os cigarros eletrônicos são utilizados, há um potencial de risco muito reduzido para o consumidor, se comparado ao uso de cigarros convencionais.

São dezenas de países em que as autoridades entenderam que é preciso dar ao consumidor adulto a opção de adquirir um produto legal, com sua composição conhecida e que venha de fabricantes que ofereçam suporte e garantia daquilo que vendem.

Os Estados Unidos optaram pela regulamentação mesmo com a explosão da crise Evali, síndrome respiratória que ocorreu devido ao uso indevido de líquidos contendo THC e acetato de vitamina E em vaporizadores de sistema aberto. Ao que parece, a FDA, que é a agência reguladora norte-americana, percebeu que a regulamentação adequada é uma forma mais eficiente de se evitar crises sanitárias do que ignorar o crescimento do consumo de um produto não regulamentado.

É como a rotulagem de alimentos. Você não proíbe ninguém de comer, mas regulamenta e alerta sobre a quantidade de açúcar ou sal, por exemplo. O trabalho da Anvisa deve ser o de analisar e definir quais substâncias podem estar presentes, bem como seus limites e os sistemas e tecnologias utilizados no produto.

Manter a proibição vai apenas incentivar que mais e mais produtos ilegais, com sabe-se lá quais composições, estejam disponíveis livremente ao redor do país. Vamos lamentar muito uma decisão como essa quando houver muito mais consumidores ou explodirem casos de doenças associadas ao consumo ilegal desse tipo de produto. E aí talvez optemos pela regulamentação, mas a um custo muito maior do que o que temos hoje.

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