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Maria Paula Bertran

O projeto que amplia a possibilidade de penhora de bens de famílias é adequado? NÃO

Marco Legal das Garantias: a garantia de que o povo vai se dar mal

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Maria Paula Bertran

Professora de direito econômico da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto, professora visitante na Stanford Law School (2020) e titular da Cátedra Fulbright em Democracia e Desenvolvimento Humano (2018)

"Eu era pobre. Agora, sou pobre e endividado." Este foi o epíteto brasileiro das últimas duas décadas, quando a popularização do crédito avançou para a baixa renda. "Eu era pobre. Agora, sou pobre, endividado e perdi a casa da minha família para a lojinha de crédito da esquina." Esta é a frase do futuro próximo.

No dia 1º de junho, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 4.188/2021, que traz uma série de alterações nas regras para utilização de garantias no país. A mais notável delas: o único imóvel da família pode passar a ser dado como garantia para saldar mais de uma dívida. Uma dívida qualquer. Impensada e reles, como as dívidas de cartão de crédito, por exemplo.

As intenções dos legisladores talvez não sejam perversas. O raciocínio superficial no qual se embasam é de que facilitar o acesso dos bancos às garantias oferecidas pelos tomadores de crédito ajudaria o tomador de crédito a conseguir mais recursos, a juros mais baixos. As consequências de os legisladores se orientarem por um paradigma ultrapassado em termos de macroeconomia e economia comportamental serão, certamente, perversas.

Os deputados que votaram o projeto de lei nada sabem sobre a crise do subprime de 2008, nos Estados Unidos. Até antes daquele ano, os economistas acreditavam, como os legisladores brasileiros, que a oferta de crédito era uma coisa sempre boa, que deveria ser estimulada por políticas públicas. A legislação estadunidense autorizou que milhões de pessoas aumentassem, artificialmente, seu padrão de vida por alguns anos, criando as condições para que o financiamento de automóveis, viagens e rolagem das dívidas de cartão de crédito fossem garantidos pelas casas das famílias.

Em 2008, a rolagem das dívidas garantidas pelos bens imóveis emperrou. Com acesso a dados extremamente precisos, sabemos hoje que houve uma saturação coletiva da capacidade das famílias em continuar o processo de endividamento. Os EUA eram um país de endividados, sem perspectiva de pagar suas contas com trabalho e renda, artificialmente apoiado em refinanciamentos imobiliários que causaram uma alta também artificial dos preços dos imóveis. O mundo parou quando o ​Lehman Brothers quebrou. Os legisladores brasileiros talvez não tenham notado quando 10 milhões de famílias americanas perderam suas casas.

Não estamos acostumados a discutir a ruína macroeconômica pelo gatilho do endividamento das famílias. Mas esse fenômeno já existiu. Em 2018, Paul Krugman afirmou que a recessão brasileira de 2014-16 teria sido causada pelo excesso de endividamento da população —não pela diminuição da compra das commodities brasileiras pela China ou pelo aumento dos gastos públicos, duas explicações comuns à época. Paul Krugman se baseia no trabalho que alguns dos maiores economistas americanos fizeram com dados do Brasil para afirmar que os efeitos sistêmicos do endividamento das famílias não se encerram nas próprias tragédias individuais, mas na ruína de um país inteiro.

Diferentemente dos EUA, não nos endividamos por nobres ou úteis motivos. O endividamento do brasileiro não acontece para ter acesso à casa própria ou para pagar um curso superior. Nosso povo se endivida por um nada, por uma compra impensada, pela dificuldade de calcular o futuro na compra sem juros do cartão de crédito, pela conduta pouco zelosa de uma lojinha de crédito agressiva. A nova lei, se aprovada, vai pavimentar o caminho certeiro para a próxima recessão econômica. E o povo, além de pobre e endividado, pode deixar de ter onde morar.

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