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Renata Rodrigues Ramos

A juíza entre a cruz e a espada

Mesmo em caso de estupro e de risco à gestante, o aborto não deixa de ser crime

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Renata Rodrigues Ramos

Mestre e doutora em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina

A defesa do fechamento de escolas e do uso de máscaras para crianças transformou "meu corpo minhas regras" em "seu corpo minhas regras". Eis que então surgiu uma juíza em defesa de bebê formado, fruto de estupro. Foi o que bastou para que retornássemos ao velho normal. O mesmo grupo que defendeu toda espécie de intervenção na pandemia, contra corpos alheios, deu de ombros para o assassinato de um feto de sete meses com 1,5 kg.

Juíza Joana Ribeiro Zimmer, de Santa Catarina.
A juíza Joana Ribeiro Zimmer, de Santa Catarina - Solon Soares/Agência Alesc

Uma narrativa produzida por reportagem jornalística conduziu o público a concordar com o aborto. Na sequência, a idade do suposto criminoso foi revelada, bem como a natureza de seu relacionamento com a vítima. A juíza estava diante de um dilema, a vontade da mãe e o direito à vida. Em tese aguardava a 26ª semana na tentativa de um parto prematuro, situação que possibilitaria adoção se fosse a vontade da família. Engenheiros sociais sentenciaram que a morte do bebê era a única resposta correta. A despeito disso, o hard case desafiava o raciocínio jurídico. Duas vidas igualmente importantes estavam em jogo e, ao que tudo indica, a saúde da menina não foi negligenciada.

Mesmo nos casos de estupro e de risco à gestante, o aborto não deixa de ser crime. Somente a pena deixa de ser aplicada pela extinção da punibilidade. Todavia, a pena não faz parte do conceito de crime. O legislador optou por não enquadrar essas duas exceções no estado de necessidade, a fim de manter a criminalização da conduta em todas as hipóteses. A afirmação de que há "direito subjetivo ao aborto", ou de que existe "direito constitucional de seres humanos matarem outros seres humanos", sugere a existência de um dever de o magistrado determinar um injusto penal. Nada mais duvidoso.

Tanto que o STJ decidiu, em 2016, pela proteção de um bebê de 22 semanas em caso semelhante. A corte considerou que havia passado "o período de 12 semanas razoável para a realização do procedimento". Nesse rumo, fica claro que bebês de sete meses não são folha de alface e que magistrados não são reféns de militantes, mas sim do Estado de Direito.

Os direitos humanos dos sistemas de justiça cristianizados têm origem remota na paixão de Cristo e no repúdio ao assassinato do inocente. Até mesmo o historiador ateu Tom Holland, autor do livro "Dominion: The Making of the Western Mind", reconhece o papel da cosmovisão cristã em dignificar os mais fracos, como as crianças. A prática do infanticídio era comum em Esparta. Os povos antigos desconheciam o conceito de indivíduo e, em consequência, direitos à vida, liberdade e igualdade.

Entre a cruz e a espada, a juíza escolheu a cruz, símbolo de uma cultura em que todos podem estar errados enquanto apenas um está certo. A tradição da cruz nos legou os direitos humanos, que consistem na proteção do inocente diante da lei do mais forte. Nisso reside a força da civilização que ainda ilumina o mundo.


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