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Silvia Pimentel e Maria Mendes

Barbárie silencia debate sobre aborto no Brasil

Quadro atual intensifica retrocessos a avanços das últimas décadas

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​Silvia Pimentel

Professora doutora da Faculdade de Direito da PUC-SP, foi integrante por 12 anos do Comitê sobre a Eliminação contra a Mulher (Cedaw) da ONU; autora, ao lado de Alice Bianchini, de “Feminismo(s)” (ed. Matrioska)

Maria Mendes

Advogada e mestranda em direito constitucional

Emergiu na mídia, nas últimas semanas, com grande intensidade, o debate sobre o aborto no Brasil, depois da notícia da menina de 11 anos, vítima de estupro, que teve a interrupção legal da gravidez impedida, barbaridade felizmente revertida, em muito, pelo esforço feminista.

Essa e outras notícias contrapõem-se aos recentes avanços latino-americanos e europeus. Argentina, México e Colômbia recentemente conquistaram a legalização do aborto; no Chile, houve a inclusão desse direito no novo projeto de Constituição; na Alemanha, uma lei do período nazista, que dificultava o acesso ao aborto, foi derrubada pelo Parlamento.

Imagem aérea mostra manifestantes em marcha pela legalização do aborto na América Latina no Rio de Janeiro em 2018
Marcha pela legalização do aborto na América Latina no Rio de Janeiro, em 2018 - Fernando Frazão/Agência Brasil

Hoje, o mundo vive grande crise humanística. A barbárie tem ameaçado e se sobreposto à civilização de formas diversas e cruéis. As contradições do capitalismo neoliberal nos desafiam a enfrentar as forças manipuladoras e "emburrecedoras" dos poderosos de plantão.

Especialmente para meninas e mulheres, no que diz respeito aos seus direitos sexuais e reprodutivos, esse contexto intensifica retrocessos fundamentalistas aos avanços por nós conquistados nas últimas décadas, a partir de nossas críticas consistentes e ações estratégicas contrárias ao jugo do patriarcado.

Esse embate é antigo. A luta feminista pela garantia dos direitos reprodutivos, no Brasil, ganhou força antes da eleição dos parlamentares constituintes, em 1986, quando o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres articulou debates nos cinco cantos do país, culminando na Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, que requeria, entre outros direitos, a "livre opção pela maternidade, compreendendo-se tanto a assistência ao pré-natal, parto e pós-parto, como o direito de evitar ou interromper a gravidez sem prejuízo à saúde da mulher".

Do outro lado, fundamentalistas insistiam para que ficasse expresso na Constituição o direito à vida desde a concepção, revogando as excludentes de ilicitude que já estavam previstas no Código Penal de 1940. O retrocesso foi, com muito esforço, barrado, mas o debate sobre o aborto, mais de 30 anos depois, segue a mesma polarização.

A criminalização do aborto é discriminatória, já que este só pode ser realizado por mulheres, e violações à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos são formas de violência de gênero que podem ser equiparadas à tortura ou ao tratamento cruel, desumano ou degradante.

Este é o entendimento da ONU sobre o tema, conforme as Recomendações Gerais 33 e 35 do Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW/ONU).

O debate sobre o aborto já está posto, mas precisa ser desestigmatizado e levado a novos e mais amplos patamares. O movimento das hermanas argentinas, por exemplo, para verem garantidos seus direitos reprodutivos, foi o de incluir o debate no cotidiano, levando a pauta para a população.

No Brasil, às vésperas da eleição e após mais de três anos de retrocessos em diversas esferas, é preciso traçar um novo caminho na disputa de narrativas. O tema da legalização do aborto e dos demais direitos sexuais e reprodutivos das mulheres não pode prosseguir sendo abafado e/ou debatido de forma preconceituosa, estereotipada e manipulada. Lamentável que ganhe força apenas quando situações execráveis acontecem.

Assim sendo, o que propomos é um grande desafio a todas e todos, sobretudo às pessoas que insistem em impor sua própria moral: respeitar a/o outra/o como a si mesmo.

Superar a convicção de que somos mais sábios, corretos ou espertos do que os outros é condição para que, ainda que não compreendendo ou concordando com a/o outra/o, consigamos respeitar seus valores, suas atitudes e autonomias.

Esse é o grande marco civilizatório que nos convida à ponderação racional entre princípios, exercício tão presente no meio jurídico e necessário à convivência e à dignidade humanas.

O aborto inseguro adoece e mata, em especial as meninas e mulheres pobres e negras. Está na hora desse debate no Brasil deixar de ser tabu, pois "quem sabe faz a hora, não espera acontecer"!

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