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Luiz Fernando Baby Miranda e Maria Paula Bertran

Decreto em lei sobre superendividamento pode criar forma de escravidão moderna

Criou-se mecanismo de transferência de renda da população vulnerável para o setor financeiro

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Maria Paula Bertran

Professora de direito econômico da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto, professora visitante na Stanford Law School (2020) e titular da Cátedra Fulbright em Democracia e Desenvolvimento Humano (2018)

Luiz Fernando Baby Miranda

Defensor coordenador do Núcleo Especializado de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública de São Paulo

A lei nº14.181/21 trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro normas expressas para a prevenção e tratamento do superendividamento das pessoas. A legislação tem dois pilares básicos: garantia do mínimo existencial e crédito responsável. Uma importante regulamentação desses dois pontos foi feita nesta semana.

O decreto 11.150, publicado nesta terça (26/7), sob o pretexto de regular a lei, extrapolou limites legais e constitucionais. Ao invés de assegurar o mercado de consumo atual e o crescimento econômico, criou um mecanismo de transferência de renda da população vulnerável para o setor financeiro.

Decreto em lei de superendividamento pode levar população carente rumo à servidão - Gabriel Cabral/Folhapress

O governo federal entendeu que o mínimo existencial, ou seja, o valor que não poderá ser tomado pelos credores compulsoriamente, é de apenas 25% do salário mínimo, ou R$ 303. O valor é inferior ao corte da linha da pobreza. Representa apenas 42% do valor da cesta básica em São Paulo.

O decreto não apresenta qualquer estudo ou justificativa para a fixação desse valor como sendo o "mínimo existencial", afrontando a lei que o enseja.

Gestada por muitos anos, por juristas competentes e socialmente comprometidos, a lei definiu a prevenção e o tratamento do superendividamento de forma a evitar a exclusão social do consumidor. Não se atinge esse objetivo, contudo, condenando o consumidor a viver abaixo da linha da pobreza.

O decreto não traz qualquer proteção especial a consumidores hipervulneráveis, como idosos, por exemplo. Os idosos enfrentam enfrentam assédio de instituições financeiras e correspondentes bancários, quando não são vítimas de crimes, como fraudes na contratação de empréstimos consignados.

Além disso, como critério para a concessão de empréstimo responsável, definiu-se que bancos devem preservar apenas 25% do salário mínimo para o devedor. Esse valor coloca em risco o próprio mercado de crédito e as instituições financeiras que pretendam ter alguma responsabilidade social.

A análise de crédito não deve ser feita apenas para que a instituição financeira não venha a ter prejuízo com determinada operação. Deveria ser uma forma de proteção do consumidor contra práticas abusivas do mercado.

Ainda que o consumidor ofereça um imóvel como garantia, a concessão responsável de crédito exige que seja feita uma avaliação razoável da capacidade de pagamento mensal. Os contratos deveriam ser cumpridos em sua obrigação principal, não como armadilhas para que a população venha a perder o patrimônio que eventualmente amealhou durante a vida.

No entanto, a partir do novo decreto, instituições financeiras poderão alegar, por exemplo, que é juridicamente lícito conceder empréstimo a uma pessoa que recebe um salário mínimo (R$ 1.212), desde que o valor da prestação preserve R$ 303 para a sobrevivência.

O crédito pode oferecer liberdade. O crédito irresponsável pode oferecer cativeiro. A lei planejava compartilhar a responsabilidade do crédito entre aqueles que o recebem (a população) e aqueles que o ofertam (os bancos e os arremedos de bancos: lojinhas de crédito, correspondentes bancários e agiotas em vestes de fintechs).

Na prática, o decreto plúmbeo vai suplantar a lei que se pretendia redentora. A determinação do mínimo existencial tem tudo para, de forma cruel, economicamente errada e socialmente injusta, criar uma forma de escravidão moderna de nossa população.


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