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Danilo Serejo

Perdemos nossas casas em Alcântara para ricaços brincarem de astronautas

Base espacial ameaça famílias e quilombos

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Danilo Serejo

Quilombola de Alcântara (MA) e membro do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe)

Em noites escuras, quem se embrenha mato adentro no Quilombo de Canelatíua sente-se como se estivesse caminhando no espaço. Os vaga-lumes ao redor e as estrelas no céu causam a sensação. Nossos ancestrais chegaram aqui da África; não vieram de foguete, mas em navios negreiros.

Apesar disso, fizeram da região de Alcântara (MA) sua terra. Ainda assim, somos tratados como ETs: só soubemos pelos jornais que a base de lançamentos instalada em nosso lar pode servir de espaçoporto para turismo espacial. Imagine perder sua casa para ricaços brincarem de astronauta?

Estrutura do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão, onde situa-se a plataforma de lançamento de foguetes, do Programa Espacial Brasileiro - Pedro Ladeira/Folhapress

A Virgin Orbit, empresa que pertence ao conglomerado do bilionário inglês Richard Branson, conseguiu em junho licença para operar no Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Seu avião de fuselagem dupla, do qual são lançadas as naves, vai decolar de sua pista.

É o mesmo usado por outro braço da empresa, a Virgin Galactic, que cobra US$ 450 mil (cerca de R$ 2,4 milhões) para quem quer bancar o Luke Skywalker. Tememos por nosso futuro próximo pela forma como temos sido tratados desde um passado não tão distante assim.

O Território Étnico de Alcântara, no Maranhão, começa a se formar no final do século 19, com o abandono das terras por seus proprietários. Ele foi certificado como remanescente de quilombo em 2004, pela Fundação Cultural Palmares. Legalmente, porém, sua existência é reconhecida desde 1856, quando obteve um registro na freguesia de São João de Cortes.

Consta, ainda, uma doação feita por Theofilo José de Barros, registrada no cartório de 1º Ofício de Alcântara, em 1915. O CLA foi criado nos anos 1980; naquela época, mais de 300 famílias de 24 comunidades do litoral foram removidas para o interior.

O impacto social foi enorme, já que a pesca é o nosso principal meio de subsistência. Não é possível, contudo, mensurá-lo com exatidão, assim como os danos causado à natureza, já que a base funciona sem nenhum estudo ou licença ambiental.

O CLA é um porto pirata. Não há informações públicas oficiais sobre que tipos de combustível são usados ou componentes químicos lançados no meio ambiente. Da mesma forma, o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe) só pode fazer estimativas de quantos de nós ainda perderão seus lares. Acontecimentos recentes indicam que cerca de 800 famílias e 30 quilombos estão ameaçados.

No fim de 2019, o CLA foi cedido aos norte-americanos. O contrato prevê a possibilidade da ampliação de suas instalações sobre o território quilombola. Em 27 de março de 2020, o governo quis remover 792 famílias de 27 comunidade, durante o pico da pandemia.

A medida só foi definitivamente revogada em dezembro passado, quando uma denúncia enviada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA em 2001, referente aos despejos dos anos 1980, foi alçada a uma instância superior, a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Em 2011, o WikiLeaks revelou que os EUA não admitiam que desenvolvêssemos tecnologia para fabricar foguetes. Não somos só nós que temos a perder; a própria soberania nacional pode ir para o espaço.


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