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Guita Grin Debert e Jorge Félix

Precisamos quebrar o silêncio e politizar o cuidado de idosos

Proposta de nova Constituição do Chile tem muito a ensinar ao Brasil

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Guita Grin Debert

Professora do Departamento de Antropologia da Unicamp e pesquisadora da Fapesp e do CNPq, é autora de “Reinvenção da Velhice” (Edusp)

Jorge Félix

Doutor em ciências sociais, professor de gerontologia da USP e pesquisador da Fapesp, é autor de “Economia da Longevidade” (ed. 106 Ideias)

A quase dois meses da eleição, a sociedade brasileira conhece muito pouco das propostas dos candidatos a presidente acerca de uma questão comum em grande parte dos domicílios do país: como atender às demandas por cuidados de pessoas idosas?

Esse desafio tornou-se muito maior com a chamada Covid longa, que atingiu tantos idosos. Até agora, os políticos brasileiros se calam, sem constrangimentos, sobre esse tema.

Idosos do Lar Bezerra de Menezes, em Sobradinho, região administrativa próxima à Brasília, fazem atividades manuais e de musicoterapia - Folhapress

Essa omissão, por incrível que pareça, é amparada por nossa Constituição, que na onda da redução do papel do Estado, no fim dos anos 1980, delegou o cuidado dos idosos dependentes à esfera privada, ao acrescentar ao artigo 230 um aposto que diz que isso se dará "preferencialmente em seus lares". Esse aposto dilui a responsabilidade do Estado e pode amparar o descaso com a velhice.

Os políticos brasileiros deveriam se inspirar no texto da proposta da nova Constituição do Chile, divulgado há poucos dias. O texto chileno, que irá a referendo popular, é um marco na história do país ao enterrar os resquícios da ditadura militar e garantir amplos direitos e igualdades em um dos países mais desiguais da OCDE.

No que diz respeito à velhice, o artigo 10 da proposta já evidencia o "envelhecimento digno" como garantia do Estado, assim como tratar a família "em suas diversas formas, expressões e modos de vida, sem restringi-los a laços exclusivamente filiais ou consanguíneos". Um avanço em relação ao conceito de "envelhecimento ativo", criticado por seu caráter produtivista.

No capítulo de direitos fundamentais, o texto inclui o preconceito por idade no artigo 25 e diz que caberá ao Estado reduzir todo tipo de discriminação. No artigo 33, o Estado assume compromisso com os tratados internacionais e estabelece prioridade com a autonomia e independência da pessoa idosa e com sua inclusão digital.

No artigo 44, o Chile cria o seu SUS (universal, público e integrado) e, no 45, o Estado retorna ao sistema de previdência social, decretando o fim da barbárie causada pela privatização do sistema de aposentadoria e adoção do modelo de capitalização que levou milhões de "aposentados" chilenos a viver abaixo da linha de pobreza.

Todavia, é nos artigos 49 e 50 que o Chile oferece uma lição maior, ao reconhecer o trabalho doméstico e de cuidado como fundamental para "a sustentabilidade da vida e para a atividade econômica".

Diz o texto: "O Estado é obrigado a fornecer os meios para garantir que os cuidados sejam dignos e realizados em condições de igualdade e corresponsabilidade". A proposta é criar um Sistema de Atenção Integral, estatal, paritário, solidário e universal para atender bebês, crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, em situação de dependência e com doenças graves ou terminais.

O Brasil tem um marco regulatório avançado para a população idosa. No entanto, o envelhecimento cobra a ampliação das políticas públicas —ou seja, uma Política Nacional de Cuidados. Outros países estão, ao menos, discutindo a questão.

Em vez disso, o Brasil assiste a retrocessos, como foi o veto presidencial à regulamentação da profissão de cuidador de idosos, ou a equívocos, como ocorre agora no Congresso Nacional em relação à regulamentação da profissão de gerontólogo, igualando o bacharel ao técnico.

O nosso desafio é quebrar o silêncio e politizar o cuidado. O Chile avança promovendo a corresponsabilidade social e de gênero e implementando mecanismos de redistribuição do trabalho doméstico e de cuidado, de modo que este não represente uma desvantagem para quem o exerce.


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