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O que a Folha pensa aborto

Sofrimento duplo

Processos criminais submetem mulheres que fazem aborto a preconceitos e ilegalidades

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Menina negra de cabelos cacheados, com camiseta escura e máscara de proteção facial no queixo, gesticulando e gritando palavras de ordem durante uma manifestação na avenida Paulista.
Ato realizado em São Paulo em protesto contra juíza que tentou impedir uma menina de 11 anos de realizar aborto após estupro em Santa Catarina. - Bruno Santos - 23.jun.2022/Folhapress

O calvário das mulheres que precisam realizar um aborto no Brasil nem sempre termina nos procedimentos inseguros praticados em residências ou clínicas clandestinas a que a maioria é obrigada a recorrer.

Ele prossegue nos tribunais, onde processos e condenações por interrupção da gravidez acrescentam uma dose extra de humilhação e violência a pessoas já fragilizadas.

Como se isso não bastasse, as ações penais não raro se amparam em provas tênues, por vezes obtidas de forma ilegal, e que redundam em julgamentos eivados por preconceitos de promotores e juízes.

Esse quadro escabroso emerge de um relatório produzido pela Clínica de Direitos Humanos das Mulheres da Universidade de São Paulo, em parceria com a Universidade Columbia e a Clooney Foundation for Justice, a partir da análise de 167 decisões sobre abortos não previstos em lei, proferidas por tribunais estaduais e cortes superiores em 2021.

No Brasil, a lei autoriza o procedimento quando a gestação resultar de estupro, implicar risco para a vida da mãe, ou em caso de feto anencéfalo. Afora isso, a prática é considerada crime, com pena de um a três anos de prisão para a mulher.

Contam-se aproximadamente 400 novas ações por ano relacionadas a casos de autoaborto ou aborto consentido. Os processos costumam ter cor e classe social bem definidas. As denunciadas, em geral, são mulheres negras e de baixa renda, obrigadas a recorrer aos serviços públicos de saúde.

Nesses locais, em vez de receberem tratamento humanizado e baseado na confidencialidade, elas terminam, em muitos casos, expostas pelos médicos que as atendem.

De acordo com o relatório, em cerca de 10% dos processos foi possível identificar que partiu de profissionais da saúde a denúncia que gerou a investigação criminal —uma atitude oposta ao que preconizam o Código Penal, o Código de Ética Médica e pareceres de conselhos de medicina, como o Cremesp.

Ocioso dizer que tudo isso poderia ser evitado caso o aborto fosse tratado no Brasil não sob a ótica penal, mas como questão de saúde pública e dos direitos da gestante, como há muito esta Folha advoga. Assim também tem entendido um número crescente de países.

Por aqui, lamentavelmente, não só o Congresso se recusa a avançar nessa direção como o governo Jair Bolsonaro (PL) ainda se esforça para restringir o acesso a esse direito até nas poucas condições em que ele pode ser exercido.

editoriais@grupofolha.com.br

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