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Fersen Lambranho

Escravidão que nos habita e nos define

Trilogia de Laurentino Gomes é vital para refletirmos sobre o Brasil de hoje

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Fersen Lambranho

Presidente dos conselhos de administração da GP Investments e da G2D Investments

O Brasil foi construído em torno de seus vastos recursos naturais. Nada supera a relevância global de nossa biomassa. Na criação deste país, contudo, o ser humano foi relegado a um plano secundário. Os povos originários, que se integravam à floresta numa simbiose, foram dizimados, impedindo que fossem a base da população.

Portugal queria criar uma nova China do ponto de vista de tamanho de mercado. O pragmatismo português levou a sociedade a ser talhada para os desafios de uma terra em que "se plantando tudo dá" e que devia ter ouro e prata.

Obra de Johann Moritz Rugendas sobre trabalho escravo no Brasil - Reprodução

Em sua trilogia "Escravidão", o jornalista Laurentino Gomes deu uma grande contribuição para a compreensão desse processo. A partir da escravidão, o autor explica a formação de nossa cultura.

No segundo livro da trilogia, que aborda o período do ouro, fica evidente que o Estado português era implacável com os escravos e com os empreendedores.

O terceiro livro trata do século 19, marcado pela Independência e pelo reinado tropical, que foi sustentado por uma oligarquia escravocrata. A leitura é angustiante para quem conhece o Brasil político de hoje. O projeto de país independente não contemplou a maior parte da população, que era escravizada.

Aos 200 anos de independência, o Brasil está dividido. Existe um confronto até familiar em busca de respostas sobre o que somos, o que queremos e qual o papel do Estado.

Seria o Estado que já prestou serviço de caça de escravos? O Estado que não educa sua população e que não busca soluções para a fome? O Estado que faz dos seus cárceres a escola da marginalidade? São muitas as perguntas.

No Brasil de hoje, há quem visite um quilombo e diga que viu gente pesando arrobas e que não serve para procriar. Uma série de podcast como A Mulher da Casa Abandonada, da Folha, revela casos atuais de escravidão, assim como o filme "7 Prisioneiros" (2021).

Nosso país é plural, desigual e cruel. A trilogia "Escravidão" me faz pensar que uma nação é definida pelo seu elo mais vulnerável socialmente. Logo, a base da pirâmide social seria a nossa melhor definição.

Uma nação cujo povo já foi escravizado, atrasada será. Uma nação com maioria de seu povo analfabeta, inculta será. Em que metade dos habitantes não tem saneamento, sem saúde será.

Raça não define capacidade ou inteligência. O valor está no cérebro humano, devidamente estimulado. Nossa maior riqueza são nossos mais de 200 milhões de cérebros, do Oiapoque ao Chuí.

Nossa maior desgraça é o desperdício desses cérebros. Não é uma questão só de racismo ou de misoginia, mas de lesa-pátria.

Nasci no Leblon, onde antes existia um quilombo. Tive uma avó preta de afinidade, que me deu muito amor e exemplo de dignidade. Cresci achando que no Brasil não tinha racismo.

Sou neto de imigrantes que não viveram a escravidão, mas minha família absorveu os cacoetes de um país em que a servidão é tida como normal. Ninguém no Brasil está imune a essa herança. Essa chaga não será curada se não for lavada e esfregada com muita força por todos.

A trilogia "Escravidão" é vital para refletirmos sobre o passado que nos habita e que nos impede de progredir. Precisamos reconhecer que somos uma nação de mestiços e pretos, imigrantes, índios e brancos. Somos a maior experiência de miscigenação do planeta.

O projeto de país passa pela valorização das pessoas. Que tal começarmos por um Estado que garanta dignidade humana e cidadania para todos, a começar disponibilizando saneamento, segurança, saúde e uma educação do século 21.

Um projeto de longo prazo, urgentíssimo e sustentável como nunca se tentou.


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