Descrição de chapéu
Clarice Pimentel Paulon

Escutas do borralho: a analista é a mãe preta e a psicanálise no Brasil

Será que haverá espaço para a transformação e o renascimento?

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Clarice Pimentel Paulon

Professora do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP

O borralho: esse lugar da cozinha, das cinzas e de onde renasce também a fênix. Não sei se se recordam das novelas brasileiras do final dos anos 1990 e do início dos anos 2000, onde havia a personagem da mulher negra, aquela que trabalhava na cozinha e que, quando a "boa sinhazinha" entrava, lamentava-se, falando de todas as suas questões amorosas, os seus problemas com o pai, a sua angústia quanto a ocupar um espaço público como mulher. A empregada, paciente e cuidadosamente, escutava, perguntava, sugeria algumas coisas que estavam fora de sua condição e alçada, o que fazia com que a boa sinhazinha encarnasse sua feminilidade e seguisse sua heroica jornada.

Ao mesmo tempo havia também a "má sinhazinha", que entrava na cozinha espezinhado a empregada, caçoando de sua falta de fineza e, ainda assim, não abstinha-se de seus serviços. Essa escuta reproduzida e construída nas novelas, representada pela mulher negra na cultura brasileira, encarna o que é esperado da saúde mental no Brasil nos dias de hoje. Tal representação possui alguns antecedentes históricos.

Quantos ouvidos olvidados são necessários para formar uma escuta no Brasil? Qual miscigenação ocupa nossa história e produz ruídos em nossos ouvidos que os capacitem a escutar a verdade? Quero convidar aqui a pensarmos o lugar histórico da verdade no Brasil e, assim, demarcar onde se ampara o lugar psíquico do brasileiro —enquanto essa entidade que vai de Gilberto Freyre a Clovis Moura, que transita entre as brasilidades e constitui, pelo menos a mim, esse curioso caso do brasileiro— não racista, que reconhece o racismo; não machista, mas que sabe da violência de gênero, observando aqui a hiância, a grande cisão entre enunciado e enunciação, entre o que é dito e o que fica por dizer e que, de alguma forma, constitui a "nega-ativa" no dito. A negritude compõe o que dizemos às avessas do nosso dizer. Para além da negritude, os povos originários da América também fazer parte desse olvido, esse lugar que, no Brasil, nós mal sabemos onde está e, por isso, expropriamos (sem) saber onde nos posicionamos nessa terra de alguém, alguém não reconhecido.

Tratando-se de saúde mental, a analista, no Brasil, tem cara negra. É mulher. Ela vem de além-mar, constitui o que Lélia Gonzalez nomeou como "Améfrica Ladina", aquele lugar onde o recalque consolidou-se em uma pele —a negra, em uma cultura — as diversas africanas que nos compuseram em uma sociedade —a escravocrata. Ela tem sangue e leite negros pelas suas diversas ocupações trabalhistas: os ditos trabalhos de sobrevivência, tal como coloca Rita Segato, e que constituem a base de toda e qualquer atividade humana —cuidar de uma casa, dos filhos (seus e dos outros)— de uma cultura e educação (mas que a elite brasileira supõe que é sua condição e prioridade).

A mulher negra. Ela está em todo lugar. Ela trabalha no SUS. No SUAS. Ela faz parte da nossa história como empregadas domésticas, como babás, como amas de leite, como trabalhadoras que sustentam um lar, o lugar mítico da mulher negra que a impede de se tornar cidadã. Ela é esse lugar da escuta sem barreiras, aquela que escuta e sempre tem algo a compor e, mesmo quando é impedida de dizer, como no caso da "má sinhazinha", diz desaforadas verdades ao longo das novelas, restituindo o lugar da verdade e de um saber que a "sinhazinha má" nunca terá, mas que a "sinhazinha boa" pode acessar com sua necessidade de escutar a diferença e de mudar se, de seu lugar alienado de branca, presa ao regime patriarcal e as necessidades de uma sociedade que também a oprime, puder escutar o que está além de seu engajamento epidérmico, olhar, através de sua alvura, o que se constitui nos recônditos do Brasil profundo: a sua negritude; arrisco dizer, o seu inconsciente negro/negreiro.

Entre a benevolência e a maldade da sinhazinha reside o seu lugar de ideal na cultura brasileira: a mãe-jurídica —já que, como evoca Segato, ela não cuida, mas sim a babá, porém, dá o nome e as condições de subjetivação à criança (muito semelhante aí a função do "pai", na psicanálise), a mulher casta e sem desejo, a mulher que pela sua alvura só consegue acessar seu desejo em uma condição limite: a de estrangeiridade (entre as negras e as prostitutas polacas, talvez, ela não precise ser beata).

Estamos sempre dispostos e condicionados a nos entregar ao que entregamos e devotamos à mulher negra. É nossa história e nossa verdade. Nossa história e nossa violência. No podcast "A mulher da casa abandonada", desta Folha, essa condição adquire uma alva espessura: "Era minha amiga, brincava comigo quando criança", dizia Margarida, a dona abandonada da casa. Ao mesmo tempo que afirmava: "Ela não trabalhava, minha mãe perguntava e ela dizia que tinha limpado os móveis e não tinha. O que eu podia fazer? Eu era criança".

O que fica enunciado aí, porém não dito, é: "Ela era criança, como eu". Por que uma criança trabalharia e outra não? As crianças todas mentem para que possam se divertir? Que infância é essa, relegada a uma empregada doméstica-menina? Que lugar é esse, de uma branca, menina, que adulteceu e acha que continua brincando de bola-queimada com sua amiga-empregada? Vemos aí como social e psíquico não são idênticos um ao outro e sim, "moebianos" (aquela figura topológica, muito cara aos lacanianos, já que, pela torção de uma das bordas que une um círculo, apresenta o "continuum-torcido" entre dentro e fora): há efeitos de um e outro que não são rebatidos em uma idêntica reciprocidade, mas que conduzem a um complexo jogo que estrutura a realidade —é necessário dizer de responsabilização subjetiva e inimputabilidade jurídica a partir dessa tessitura.

Rita Segato, antropóloga argentina e professora aposentada na UnB, diria eu uma estrangeira-brasileira tal a verdade de seus escritos, dizia, em seu célebre artigo intitulado inicialmente como "Édipo Brasileiro" (2006), que há uma foraclusão dessa mulher negra na cultura brasileira, que constitui a nossa branquitude: misógina e racista. Foraclusão, em termos psicanalíticos, é mais intenso e grave que recalque, porque se relaciona com um apagamento que muitas vezes é irretornável na simbolização. Ele só aparece a partir de um ato, de uma ação, de algo que se sustenta na existência; diferentemente do recalque, simbolizável, dito, articulável, interpretado. Na foraclusão, um dos registros falta para que possamos consolidar uma significação para além da nossa epiderme, ou seja, do nosso registro concreto e literal. A antropóloga nos propõe essa leitura a partir da análise histórica no Brasil do apagamento das amas de leite, amas-secas e babás em nossa história, e, assim, de nosso traço afetivo também. Um apagamento que diz da nossa verdade: não conseguimos encarar mulheres negras sem dizer de onde somos: do encontro da tradição com o borralho.

Em outro tempo, já no final dos anos 1980, Lélia Gonzalez, brilhante antropóloga, nos diz, sobre essa mulher negra foracluída em sua posição, que ela é o "objeto a" na cultura brasileira, porque representa o recalque. É essa mulher que é desejada —"a mulata tipo exportação" e ao mesmo tempo que é rebotalho, lixo— segundo as palavras da autora, por estar em trabalhos minorizados, de sobrevivência (um desejo recalcado que se institui pela "nega-ativa"). Pela negação de sua verdade. E o que resta à mulher branca? A castidade, o amor puro e ideal e... A frigidez. Estamos todas presas em um regime de objetificação e idealização do qual não podemos fugir dentro de nossos padrões patriarcais.

Para além da discussão endogâmica que os termos foraclusão e recalque possam provocar na diagnóstica da psicanálise, é evidente que tanto Segato como Gonzalez miram, com uma única flecha, e acertam a alvura brasileira que se faz pelo apagamento e exclusão da negritude e que produzem um sintomático delírio: um delírio à flor da pele, um sintoma da nossa lida com a memória: seria a cultura brasileira uma adolescente borderline, carregando na pele aquilo que não se dissolve nem se ancora a símbolo algum no nosso território? Seja por uma leitura que convoque nossa relação com a memória, tal como faz Gonzalez, seja pela via do ato, como propõe Segato à elaboração elegante da primeira, situando a mulher negra como "objeto a" da cultura brasileira é o que causa a liga, que evidencia a mulher negra como essa grande analista no Brasil.

Quem nos aponta essa liga é Jacques Lacan e, assim, peço licença para sair rapidamente de nossas grandes e necessárias referências quanto a verdade brasileira, me ancorando ao francês psicanalista e estruturalista que nos diz muito sobre a escuta estruturada pela linguagem e que espera que a preenchamos com experiência (coisa que muitos analistas ainda não entenderam, chamando experiência, pejorativamente, de imaginário). Dizia ele que o analista deve ser o "objeto a" do analisante —diria eu, a partir das elucidações de Lélia Gonzalez, que o analista ocupe esse lugar de desejável e deplorável — tal como a autora nos diz sobre a mulher negra na cultura brasileira.

É como "objeto a" que conseguimos nos constituir como essa escuta em ato para a "sinhazinha boa" e a "sinhazinha má" —a escuta sem barreiras. É desse lugar de rebotalho-desejo que a verdade pode enunciar-se. No caso do Brasil: a verdade negra de sua brancura. Dita lá no primeiro hospital de alienados de Dom Pedro 2º, dita nas falas higienistas, dita, sem dizer, em uma limpeza étnica que teme enunciar sua verdade: O Brasil não é europeu. O Brasil é ladino. O Brasil é amefricano.

Um dia, escutando os sepultadores do município de São Paulo, trabalho realizado durante a pandemia, um deles, o querido Osmair Cândido, o coveiro filósofo do cemitério da Penha (zona leste de SP), me disse que o Brasil não podia ser "o país do futuro, sustentado em suas bases oníricas. É preciso saber da morte para dar materialidade à vida". Do que depreendi que um país que não reconhece a sua história nunca poderá avançar rumo ao desejo e sim ficar nos olhos daqueles patriotas como a grande esperança que nunca foi fundada —sempre mítica, ideal e irreconhecível: porque não somos (europeus).

Para uma análise desse caso brasileiro é necessário resgatar os traços do seu passado. É necessário negritar-se. O sintoma brasileiro, essa construção entre a foraclusão de Rita e o recalque de Lélia, só conseguirá ser olvida —e, aí sim, colocada em seu lugar de justeza no tempo — quando auscultada por ouvidos enegrecidos: relegar o negreiro ao passado e abraçar a negritude do nosso território. Quando reconhecermos o cheiro e o suor negros na nossa história e, só aí, poderemos dizer de um país: latino, brasileiro, verdadeiro.

As cinzas também são o lugar da fênix, já que ela ressurge e se transforma delas. Será que do nosso borralho também haverá espaço para a transformação e o renascimento? Tal como Mateus Aleluia enuncia em seu "Amor Cinza" —"Não aceito quando dizem que o fim é cinza / Eu vejo o cinza como um início em cor" —, que o Brasil negrite-se para transformar-se e colorir.

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