Descrição de chapéu
Militares do Brasil forças armadas

Falhamos como país, porque suportamos o insuportável

Tudo de mais brilhante no legado das gerações anteriores à minha parece estar se desmanchando no ar

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São Paulo

Ando ponderando se o poeta Arthur Rimbaud estava correto quando escreveu que o insuportável é saber que nada, de fato, é insuportável. Será mesmo? O quão insuportável o insuportável precisa ser para que, enfim, o impulso de seguir em frente não se justifique mais?

No Brasil de sempre, mas em especial neste dos últimos anos, a realidade impõe o impossível como regra. É o céu de São Paulo escurecido às 15h pelo fogo na Amazônia, o que parece ter sido há uma vida, mas são três anos. É Genivaldo asfixiado, porque dirigia sem capacete. É o refrão paralisante: "E daí?". Quão insuportável o insuportável deve ser e para quantos? Para quem? Em quantos lugares e horários diferentes?

Incêndio próximo ao rio Branco na reserva extrativista Jaci-Paraná, em Porto Velho (RO) - Christian Braga - 16.ago.20/Greenpeace

Essas perguntas fixaram-se em mim, em definitivo, no dia 21 de setembro de 2019. Era um domingo e eu era o plantonista das 7h da manhã. Ágatha Felix, 8, foi baleada nas costas, na Penha, zona Norte do Rio, e morreu na madrugada de sábado. Nunca esqueci aquela manhã, muito menos esqueci Ágatha. Nunca esqueci seu avô em prantos, a fantasia de Mulher Maravilha, a versão da Polícia Militar incompatível com o que diziam as testemunhas.

Tudo era insuportável. Mas suportei, porque suportamos. Como neste país se suporta, por hábito histórico-macabro, a morte de crianças com balas nas costas ou na cabeça.

Vários homens com os corpos totalmente cobertos com roupas brancas carregam caixão para sepultamento em área verde à noite
Sepultadores carregam caixão de vítima de Covid -19, no Cemitério da Vila Formosa, em São Paulo - Lalo de Almeida - 31.mar.21/Folhapress

Como se suporta as mortes de 678.578 mil pessoas em uma pandemia, quando era claro o caminho para que este número fosse tão menor e, o cemitério, tão mais vazio. Como se suporta que 33 milhões dos nossos passem fome todos os dias. Como se suporta o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips e todas as omissões institucionais. Como se suporta um governo que trabalha ativamente para destruir tudo de melhor que construímos nas últimas três décadas, pautados no espírito, ou ao menos na intenção, de sermos hoje melhores do que nosso passado permitiu. Este esforço de fundar, enfim, um Brasil que, se não um lugar fantástico, ao menos garanta dignidade a todos. O mínimo.

Tudo de mais brilhante no legado das gerações anteriores à minha, sinto, parece estar se desmanchando no ar, escorrendo entre os dedos. Falhamos —nossos avós, nossos pais, mães e nós mesmos. Porque suportamos esta sub-realidade, que para ficar ruim deve melhorar muito.

Aceitamos que generais de terno e gravata brinquem de governar nossa democracia. Nós os tememos, como nossa história bem dita que devemos temer. Mas basta. Chega um tempo, neste segundo semestre de 2022, quando não podemos mais aceitar viver com um longo passado pela frente. Não deixemos para nossos filhos e netos a responsabilidade de acertar as contas com o Brasil. Nem de suportar o insuportável.

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