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Daniel Sarmento e Ademar Borges

PGR, CPI da Covid e o papel do STF

Canetada não pode jogar no lixo árduo trabalho dos parlamentares da comissão

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Daniel Sarmento

Professor de direito constitucional e ex-procurador da República

Ademar Borges

Doutor em direito público (Uerj), é professor de direito constitucional do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa)

Recentemente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu o arquivamento da maior parte das "investigações preliminares" instauradas contra Jair Bolsonaro (PL) e integrantes do seu governo a partir do relatório final da CPI da Covid. Os arquivamentos causaram indignação, mas não surpreenderam ninguém. Todos sabem do total alinhamento entre o atual procurador-geral, Augusto Aras, e Jair Bolsonaro. A essa altura, a questão mais importante é outra: o que o Supremo Tribunal Federal deve fazer diante disso?

A primeira opção seria afirmar que os pedidos de arquivamento de investigação criminal pelo PGR no STF deveriam se submeter à revisão por um órgão colegiado da própria Procuradoria-Geral da República: o Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF). Afinal, a República não tolera poderes absolutos. Muito menos poderes absolutos monocráticos, que são próprios do absolutismo.

Mas, ainda que o Supremo não esteja disposto a alterar sua jurisprudência atual, que ainda considera absoluto esse poder de arquivamento de investigações pelo PGR, há uma segunda opção. A corte poderia afirmar que, no mínimo, esse controle pelo CSMPF deve ocorrer no caso de investigações criminais instauradas em decorrência do encaminhamento do relatório da CPI em razão da especial deferência que merece, na ordem jurídica brasileira, o trabalho investigativo realizado pelo Poder Legislativo.

Inspirada por propósitos democráticos, a Constituição de 1988 reforçou as competências do Poder Legislativo, em salutar reação à concentração excessiva de poderes no Executivo que caracterizava a ditadura civil-militar. Dentre as competências legislativas reforçadas, figura a de realizar investigações, que têm o seu ponto alto na atuação das comissões parlamentares de inquérito.

Esse reforço constitucional das CPIs é evidenciado pela decisão do constituinte que, pela primeira vez na nossa história, atribuiu a elas "poderes de investigação próprios das autoridades judiciais" (art. 58, § 3º, CF/88) e previu, ainda, que se a comissão concluir no sentido da existência de irregularidades nos fatos investigados, essas conclusões devem ser "encaminhadas ao Ministério Público para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores".

A deferência institucional diante das CPIs foi reconhecida por decisão recente do plenário do STF. Ao julgar a ADI 5.351, relatada pela ministra Cármen Lúcia, a corte considerou constitucional o preceito legal que determinara a priorização dos procedimentos administrativos e judiciais instaurados em decorrência das apurações das comissões parlamentares de inquérito. Para o Supremo, a regra —aplicável também às investigações criminais instauradas pela PGR— seria válida, "considerando o interesse público atingido e a deferência constitucional ao poder fiscalizatório do Congresso Nacional (inc. X do art. 49 da Constituição da República)".

Não parece compatível com a "deferência constitucional ao poder fiscalizatório do Congresso Nacional" —para repetir a feliz expressão empregada pelo STF— a possibilidade de arquivamento de investigações derivadas de CPI por decisão monocrática do PGR, insuscetível de qualquer controle institucional. Em palavras mais simples, a canetada de uma única pessoa não pode jogar no lixo o árduo trabalho de dezena de senadores ou deputados. Permiti-lo não seria compatível com o princípio da separação de Poderes, que impõe uma postura de respeito recíproco entre os Poderes estatais.

Por isso, ainda que se entenda que o mecanismo previsto no art. 28 do Código de Processo Penal não deve ser aplicado, via de regra, à atuação penal do procurador-geral da República e de seus substitutos perante o STF, é preciso reconhecer a existência de exceção, no caso das investigações decorrentes de CPI. Uma exceção fundada diretamente na Constituição e que dá concretude à ideia, já reconhecida pelo Supremo, de deferência constitucional às investigações parlamentares.

A solução aqui proposta para essa específica forma qualificada de omissão do procurador-geral não é casuística. Pelo contrário, seria constitucionalmente adequada em qualquer contexto. Mas é preciso lembrar que o problema não é só de impunidade em relação ao passado. O cenário atual, em que o presidente ameaça quase todo dia não reconhecer o resultado das eleições, evidencia a urgência de que seja adotada pelo STF, que, mais uma vez, não faltará à República.

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