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Sergio Couri

Terceira via e desenvolvimento econômico

Não bastam nomes, mas também ideias alternativas de gestão política, econômica e social

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Sergio Couri

Embaixador, economista, advogado e escritor

Inquieta-me a expressão "terceira via", usada na Inglaterra a partir de Giddens, ou a "terceira posição" de Perón, na Argentina. Terceira via requer primeira e segunda, ao passo que o liberalismo e o socialismo são falsas dicotomias entre si. Nessa linha, só existe uma única via, a ser aperfeiçoada. Da mesma forma, desconforta-me a denominação "centro", por inautêntica. Alberga fisiologismos, permitindo a atores sociais e políticos defenderem-se de inconsistência e indefinição ideológicas e das práticas compatíveis. Fala-se demasiado de um "centro" indefinido.

O "centro" não está construído. É zona inexplorada. A maioria dos atores foge a identificar-se com "esquerda" ou "direita", para melhor resultado eleitoral. Também se diz de "centro-esquerda", quando se tem base eleitoral mais próxima ao salário mínimo, ou de "centro-direita", quando mais próxima às classes médias.

Centro não existe aprioristicamente. Precisa ser construído. Por isso costuma ser associado a um "ficar em cima do muro".

Parafraseando Clausewitz , acaba sendo o adiamento da "guerra" por outros meios. Por isso, é tema por demais abrangente para ser deixado apenas aos agentes políticos. Deve ser também tratado pelos pensadores e cientistas sociais, como engenharia social, que não prescinde de arquitetura. Não pode haver "centro" sem consistente ideário e programática de "centro".

"Centro", ou "terceira via", é contínua elaboração, porque o liberalismo puro ou histórico, herança dos séculos 17 e 18, nem sempre contribuiu à realização da liberdade. Quando o liberalismo existiu sem limites e controle, operou a favor dos mais fortes, e disso surgiram o capitalismo dito "selvagem" e os regimes autoritários, pois, para manter o liberalismo econômico, em certos momentos a ideologia liberal canibaliza suas faces política e civil, que têm de renascer das próprias cinzas.

De modo análogo, o socialismo puro, marxista ou utópico, nem sempre contribuiu para o avanço da igualdade —e muito menos da liberdade, porque não foi feito para tanto.

Por outro lado, algumas "terceiras vias" ao longo da história, confrontadas por um de dois polos, enveredaram pelo nacionalismo extremo e pelo autoritarismo. Autoproclamavam-se "terceiras vias", mas cometeram o erro de pretender que o Estado fosse o juiz do conflito social, o que produziu resultados perversos, porque o mesmo é instrumento do poder; logo, não é juiz imparcial, não é o estágio mais alto da racionalidade, como quis Hegel. Ou se tornaram simples gangorras de benesses, como no caso dos diversos populismos.

Com miras às vindouras eleições, uma "terceira via" procura articular-se no Brasil como alternativa à radicalização e intolerância que se instalaram na sociedade brasileira.

Contudo, uma genuína terceira via não se fará tão somente com o lançamento de nomes alternativos, mas, sobretudo, com ideias alternativas de gestão política, econômica e social e de uma plataforma de ação que ponha o Brasil no rumo certo, ao ritmo desejável.

Não se construirá terceira via com a soma dos índices de rejeição aos nomes que a esquerda e a direita trazem ao ringue eleitoral, ou que não elabore e desenvolva certas interfaces, de modo a identificar com lucidez os problemas brasileiros e conceber estratégia pertinente de "fazer" público.

De assim não ser, estar-se-á desperdiçando rara oportunidade de sensibilizar a cidadania para a descoberta de fórmulas que permitam o compromisso e a conciliação.

O ponto de partida de um discurso e práxis de terceira via, e de seu "bloco histórico", outro não pode ser que o crescimento econômico, mola mestra do desenvolvimento. Concentração de esforços em um crescimento sustentável, como fonte de recursos para o desenvolvimento, para a maior setorialização e do Estado e do mercado na sociedade. Mas crescimento sustentável é também aquele que evite concentração de renda que possa levar a um capitalismo sem mercado, ou a critérios de dispersão de renda que findem por inibir um crescimento expressivo.

Desde os anos 1980, a taxa média de crescimento do PIB brasileiro situa-se em torno de 2%, o que, descontada do crescimento demográfico, não inferior a 1%, aponta taxa de desenvolvimento econômico menor que 1% ao ano, na linha de Harrod-Domar. Isso sem mencionar as margens de erro e os fakes. São as quatro décadas perdidas, sem arranque para um verdadeiro desenvolvimento.

Mais ainda, o crescimento está fortemente atrelado a fatores externos, como variações no preço das commodities e alguns outros produtos que disfarçam a falta de aparelhamento da economia para o crescimento autopropulsionado. Quando a maré internacional baixa, deixa à mostra esse iceberg, e o clamor aumenta pelas "reformas", medidas polêmicas que não renderão os resultados de curto prazo esperados por um país onde já não existe espaço para o não crescimento.

Trata-se, portanto, de estratégia de crescimento a ser concebida e implementada com rigor merkeliano, protegida de ações desviáticas. A dramaticidade do tema não permite muitas digressões sobre prioridades, apenas sobre técnicas e instrumentos. O receituário se simplifica.

O primeiro item da receita é o redimensionamento do papel do Estado, ora inchado, ora desidratado. Ele deve ter por objetivo básico, além de suas funções clássicas, o de criar "externalidades" (benefícios diretos e transversos) para todos os demais atores econômicos, incluindo ele próprio. Ademais, a qualidade da gestão estatal no Brasil não recomenda excessiva confiança no papel do Estado como agente do desenvolvimento, a não ser pela via intrínseca das externalidades.

O segundo item é a definição do papel do mercado. Aos setores diretamente produtivos deve ser deixada a tarefa de capitanear o crescimento, pois são os que reúnem condições de fazê-lo com maior eficiência, cabendo ao Estado priorizar em sua política econômica o aumento seletivo da produção.

Postos os atores em seus devidos lugares, o Estado brasileiro partirá em busca do maior volume possível de capital de risco e financeiro com que promover a implementação de externalidades pelo Estado e a expansão produtiva pelo mercado. "Nessun dorma"!

Atratividade para investimentos diretos e indiretos, financiamentos externos e internos, venda de ativos não monetários, de títulos e obrigações do Tesouro; política de juros, câmbio e inflação em patamares compatíveis com a competição no mercado externo etc. merecem ação incansável, mormente considerando-se o baixo grau de poupança e liquidez de uma economia exaurida por um crescimento inexpressivo.

Esforço intimamente ligado ao crescimento será o de aumentar a fatia do Brasil como "parceiro global" ("global partner" e "global trader"), condizente com ser uma das 15 maiores economias do mundo, preferivelmente sem reprimarização da pauta de exportações. A participação do Brasil no comércio internacional desceu do já pífio 1% dos anos 1970, o que pode marginalizá-lo no mercado globalizado.

Finalmente, não há como fugir a prioridades na definição de metas e projetos para a ação direta ou indutiva do Estado, com rígido controle do desempenho, dos mais diversos prismas, num país onde a máquina pública não dispõe de "esteiras de transmissão" eficientes.

Propósitos de terceira via que puderem percorrer essa distância entre o presente e o futuro no mais breve tempo possível serão os únicos dignos no Brasil de hoje e não deixariam de ser acessíveis às atuais "primeira" e "segunda" vias.

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