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Ana Claudia Cifali

Crianças e armas

Retórica belicista ignora consequências nefastas

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Ana Claudia Cifali

Doutora em ciências criminais (PUC-RS), é coordenadora jurídica do Instituto Alana

A cada 60 minutos uma criança ou adolescente morre no Brasil em decorrência de ferimentos por arma de fogo. A cada duas horas uma criança ou adolescente dá entrada em um hospital da rede pública com ferimento por disparo de arma.

Os dados da Sociedade Brasileira de Pediatria mostram a tragédia alimentada pelo irresponsável plano do atual presidente da República de permitir que mais armas circulem no país. Por isso, é muito bem-vinda a decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, que interrompeu esse ímpeto armamentista ao conceder liminares em três ações diretas de inconstitucionalidade e suspendeu decretos presidenciais que flexibilizaram a compra e o porte de armas.

Jair Bolsonaro, então candidato à Presidência, incentiva criança a simular arma com os dedos em Goiânia - Folhapress

Essa política armamentista, além de incompatível com a democracia, gera riscos à vida de toda a população e aumenta a vulnerabilidade de grupos sociais como crianças e adolescentes, cuja proteção deve ser garantida com absoluta prioridade, conforme o artigo 227 da Constituição. Mais armas e munições em circulação tendem a aumentar estatísticas de homicídios, suicídios e acidentes domésticos, além da possibilidade de armas serem desviadas para as milícias e o crime organizado.

Assassinatos de crianças e adolescentes têm uma variável em comum no Brasil: as armas de fogo. Em 2021, sete crianças ou adolescentes foram vítimas da violência letal por dia. Entre as crianças, a arma é responsável por 50% das mortes, enquanto entre os adolescentes o número chega a 88%, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022.

As mortes violentas também refletem o racismo estrutural da sociedade brasileira: 66,3% das vítimas são negras, e 31,3%, brancas. Entre os adolescentes, a hiper-representatividade de vítimas negras salta para 83,6%. O perigo das armas não está só nas ruas, mas nas casas. Entre 2013 e 2019, foram registradas 965 internações de crianças e adolescentes entre 0 e 14 anos decorrentes de acidentes com armas de fogo, segundo o Criança Segura.

Após o Estatuto do Desarmamento, o número de crianças mortas por tiro acidental em casa, que era de cerca de 20 por ano, caiu para a metade. Agora, voltamos aos antigos patamares. É importante lembrar que a maioria das crianças de 7 a 17 anos não diferencia armas reais das de brinquedo: quando expostas a uma verdadeira e a outra de brinquedo, 41% das crianças e adolescentes tiveram dificuldades de discernir entre elas.

Nos EUA, país com maior permissividade na posse de armas, no começo da pandemia, em 2020, 4.368 crianças e adolescentes morreram por armas de fogo, sendo 1.293 dessas mortes por suicídio. É esse caminho que queremos seguir?

Hoje, em pleno setembro amarelo, temos a obrigação de alertar a população que ter uma arma em casa é um fator de risco para o suicídio —especialmente de adolescentes. No Brasil, as taxas de mortalidade de adolescentes cresceram 81% no período de 2010 a 2019, passando de 606 para 1.022 óbitos, conforme dados do Ministério da Saúde. Especialistas apontam que políticas de prevenção devem focar em saúde mental e nos meios para o suicídio. E os decretos publicados pelo governo vão na contramão dessa recomendação.

A retórica de cultuar armas de fogo com o falacioso argumento de promover segurança pública ignora suas consequências nefastas. O governo optou por reforçar uma ideologia calcada no estereótipo da masculinidade autoritária e mostrar às novas gerações que conflitos devem ser resolvidos por meio da violência —caminho inverso para uma cultura de paz. Em uma sociedade marcada pelo racismo estrutural e pela violência patriarcal, o aumento da circulação de armas de fogo não é capaz de trazer um resultado diferente do que a maior exposição de mulheres, crianças e jovens, sobretudo negros, à violência letal.

O (des)controle de armas firmou-se como mais uma política de morte promovida pelo governo federal, que não demonstra compreender que alguns grupos sociais têm direito à uma proteção qualificada e prioritária. Quantas Ágathas, João Pedros, Kauãs, Marias, Rayanas, Carolinas, Douglas, Ítalos, Emilys e Rebecas vamos permitir que continuem virando estatística?

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