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Vanessa Ziotti

O hype do desinformado

Pondé se iguala ao terraplanismo ao reavivar tese anticientífica para o autismo

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Vanessa Ziotti

Autista e mãe de trigêmeos autistas, é membro da Comissão de Direitos da Pessoa com Deficiência e coordenadora do Grupo Especial de Educação Comissão PCD (OAB-SP); diretora jurídica do Instituto Lagarta Vira Pupa

Até os anos 1980, o autismo era considerado distúrbio adquirido por influência do ambiente, especificamente por culpa da "mãe geladeira" -assunto agora requentado em coluna de Luiz Felipe Pondé nesta Folha ("O diagnóstico de autismo se transformou numa tendência de estilo hype", 28/8). Aliás, fica a dica. Escolha melhor o conteúdo que o senhor consome -trata-se de um viés extremamente machista, misógino e capacitista, como se a mulher tivesse falhado na única missão que tem na vida: cuidar.

Um estudo publicado pela revista acadêmica JAMA Psychiatry, em julho de 2019, confirmou que de 97% a 99% dos casos de autismo têm origem genética, sendo 81% hereditária. Dois relatórios do CDC (Centro de Controle de Doenças e Prevenção dos EUA) tratam da prevalência do autismo. O primeiro, de 2016, apontou 1 criança com TEA (Transtorno do Espectro Autista) para cada 54 com até 8 anos de idade. Já no segundo, realizado em 2018, o CDC sugere que há 1 em cada 44 crianças (2,3% dessa população), um aumento de mais de 22%.

A conclusão dos estudos: os números crescentes de casos de autismo se devem mais a uma maior identificação e a diagnósticos aprimorados do que a uma mudança real na prevalência. Ou seja, não há mais pessoas com autismo: elas apenas estão sendo mais e melhor diagnosticadas. Essa "modinha" é uma luta constante e coletiva para que pessoas com deficiência possam existir, ter acesso à saúde, à educação, ao mercado de trabalho.

Essa moda é sobre acordar todos os dias e pensar que poderia ser um filho nosso naquele camburão da Polícia Rodoviária Federal em que Genivaldo de Jesus Santos, 38, morreu asfixiado -Genivaldo era neurodivergente, da nossa turma descolada- simplesmente porque os agentes não sabiam como agir para abordar uma pessoa com deficiência (e muitos deles desconhecem a lei 13.146/2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência).

Nossa maior cruzada está na promoção da conscientização da população de conhecimento raso, como o sr. Pondé, que acredita na teoria da "mãe geladeira", da mãe que não ama e afasta o filho. É impressionante como uma teoria de 1947, que empata com o terraplanismo no quesito veracidade, possa ser ventilada num veículo de circulação nacional.

Eu, mulher nascida em 1989, comecei a falar aos seis meses de idade, fui tratada como ansiosa e depressiva por 33 anos, mas, na verdade, ansiedade e depressão eram apenas comorbidades associadas ao autismo e ao TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) -nunca diagnosticados e corretamente cuidados, mascarados pelas "altas habilidades" por três décadas.

Séries de TV como "Uma Advogada Extraordinária" (Netflix), por mais que reforcem estereótipos de que "autistas são gênios", são importantes por que trazem representatividade e, talvez, incomodem parte da sociedade que, como o sr. Pondé, não acredite que pessoas com deficiência possam ocupar determinados espaços.

A atriz sul-coreana Park Eun-bin, que interpreta uma advogada autista de alto desempenho na série "Uma Advogada Extraordinária", da Netflix - Netflix/AFP

Segundo o sr. Pondé, ser autista está "na moda" -que moda é essa onde 80% dos pais abandonam o lar após o diagnóstico dos filhos? Será que o colunista sabe que autistas que dependem do SUS estão esperando seis meses numa fila para passar com o neurologista? Que fazem 20 minutos de terapia no Caps e têm alta para dar lugar a outros pacientes, visto que não há vaga para todos? Será que o sr. Pondé conhece a moda da mãe que não pode trabalhar formalmente para não perder o BPC (Benefício de Prestação Continuada) e, assim, sustentar uma casa toda sozinha? Imaginem se o ensaísta descobre que na nossa "onda" tem criança autista sem vaga na rede pública e particular de ensino porque "dá trabalho demais".

O novo hype, sr. Pondé, não é ser autista, mas sim espalhar desinformação, com viés machista e capacitista, baseado no instituto "vozes da cabeça".

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