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Alvaro de Azevedo Gonzaga

Não comemos carne humana

Na verdade, presidente, o senhor ignorou nossas carnes em sua política nefasta

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Alvaro de Azevedo Gonzaga

Indígena guarani-kaiowá, é livre-docente e professor de direito da PUC-SP; pós-doutorado em história indígena pela UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados)

Passou a circular pelas redes sociais um vídeo em que um homem ironiza as tradições indígenas para, em seguida, apresentar mais uma declaração chocante. Este senhor afirma, em entrevista gravada, que comeria carne humana, especificamente carne indígena "sem problema nenhum".

Este é o mesmo senhor que usa todo o seu histórico de atleta para correr de entrevistas, fugir de perguntas de mulheres jornalistas e da sua ligação com mais de dezenas de imóveis comprados com dinheiro vivo ("moeda corrente", antes que critiquem, é dinheiro vivo). O mesmo vigor com que patrocinou o etnocídio, o ecocídio, o genocídio e o normaticídio, especialmente contra os povos originários.

Bolsonaro em entrevista ao NYT fala que quase comeu um índio
Bolsonaro durante entrevista ao New York Times, realizada em 2016 - Reprodução

Não teve medo quando defendeu o furto de terras indígenas por meio do esdrúxulo projeto de lei 490/2007, do marco temporal, que usurpa terras ocupadas pelos povos originários antes de 5 de outubro de 1988. Não tremeu quando patrocinou o projeto de lei 191/2020, que pretende legalizar mineração e hidroelétricas em terras indígenas.

Não se irritou com o envenenamento de crianças quando defendeu o projeto de lei 6.299/2002, que permite o uso de agrotóxicos —banidos, frise-se, no resto do mundo— nos alimentos fornecidos à população brasileira. Sequer se sensibilizou com a morte de centenas de milhares de pessoas pela Covid-19.

Seu tom de voz não se alterou quando se descobriu que seu governo atrasou a compra de vacinas propositalmente, ou quando se revelou um esquema de propina durante a compra de imunizantes. Não se sensibilizou com crianças yanomamis morrendo de malária pela falta de cloroquina enquanto mandava toneladas desse medicamento para o restante do país para uso não recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

O senhor, que ignora nossas vidas, coincidentemente ostenta o título do governo que mais desmatou, mais garimpou e mais destruiu a natureza brasileira. Afirma que "tem pouco índio para muita terra" porque não conhece nossa cultura e história de guardiões da natureza —caso contrário saberia que tem "muita terra para ser protegida por poucos indígenas".

Não se quedou diante de toda a maldade, o caos e as condutas praticadas nos últimos quatro anos no Brasil, mas agora, próximo do segundo turno das eleições, seu senso de moral parece gradualmente, e artificialmente, se aguçar.

Pois bem: chegou a hora de a cultura indígena dizer ao senhor que não tens autoridade nem autorização para comentar sobre nossos corpos e nossa cultura. A rigor, já deu provas suficientes de que não a conhece e não a respeita.

Aos que dizem que "nossa bandeira jamais será vermelha", saibam que há quatro anos ela é só vermelha. Vermelha do sangue indígena, dos mortos de Covid e do fogo que queima nossa mata e nossa pele, dia a dia, com suas políticas excludentes.

Que os ignorantes voltem a ter vergonha, que os estudiosos voltem a ter palavra, que os jovens voltem a ter futuro e que os intolerantes sejam vistos como aqueles que mais desmataram, que menos demarcaram, que mais garimparam e que nada da natureza preservaram.

Não se enganem: vocês têm ódio, ódio dos que estudam, ódio de nossos saberes, ódio de nossos corpos, de nossas falas e de nossa existência.

Bem, creio que agora está contextualizada vossa fala. E que, com os pingos nos indígenas, não aplique sigilo de 100 anos ao descaso notório deste governo com nossas carnes em suas políticas.

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