Palavra ninguém mata

Como é bonita a força, ora minúscula, ora maiúscula, daquilo que ninguém consegue calar

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Giovana Madalosso

Tem gente que anda por aí com arma no porta-luvas mas morre de medo quando uma palavrinha de meio centímetro se aproxima. Eu vi com meus próprios olhos, numa reunião. Projetaram na tela: prezad@s. Um homem levantou o braço, nervoso: querem me arrancar o masculino? E isso que a palavra nem era neutra. Essas, perseguides por certos grupos, só pipocam ainda mais. Amarga ilusão achar que é possível controlar a língua, esse movimento popular. Os linguistas podem até organizá-la mas quem
transforma a matéria é a base.

Se uma incomoda, várias incomodam muito mais. Não podiam falar contra a ditadura? Cálice, cálice, cálice. E a quantidade de fósforos desperdiçados em fogueiras de livros? Basta uma palavra morrer ali para ressuscitar acolá. O clássico Ulysses chegou a ser proibido por ser considerado obsceno. Fã da obra, Anthony Burguess desmembrou a lombada, costurou os capítulos dentro da roupa e, literalmente,
levou a frente a palavra de Joyce.

Foto mostra diversos dados de madeira com letras diferentes nas faces
Foto mostra diversos dados de madeira com letras diferentes nas faces - blickpixel/Pixabay

Na Rússia stalinista, a poeta Anna Akhamátova foi proibida de escrever sob pena de ser presa. Não podendo sequer ter rascunhos em casa, Akhamátova chamou suas amigas e pediu que cada uma delas decorasse um verso de seu derradeiro poema, Requiem, hoje muito mais vivo do que qualquer soldado da época.

E não vamos nos esquecer da nossa ministra. Em 2018, Damares tentou proibir as escolas de usarem a palavra "gênero" em sala de aula. Novamente em vão. O tornozelo de uma letra é demasiado fino para ser preso a uma bola de ferro e ninguém conseguiu botar o verbete na cadeia.

Podem instituir decretos, intimidar os falantes, mas não há quem segure as pernas esbeltas, livres e ágeis das palavras, passando por debaixo das portas, pelas aberturas das janelas, pelas frestas dos dentes, arrepiando os bigodes dos repressores. Como é bonita a força, ora minúscula, ora maiúscula, daquilo
que ninguém consegue calar.

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