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Rodrigo Coppe Caldeira

Bento 16, entre o passado e o futuro

Abdicação ao trono mostrou conexão com o pontificado de Francisco

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Rodrigo Coppe Caldeira

Historiador e professor da PUC Minas

Bento 16 (1927-2022), o papa teólogo morto neste sábado (31), é um dos nomes mais marcantes da história recente da Igreja romana. Sua ampla reflexão sobre a igreja e o mundo moderno, tema que o acompanhou durante a vida, tem suas primeiras expressões no Concílio Vaticano 2º (1962-1965).

Buscando seguir a intuição do papa João 23, que afirmava a necessidade de "aggiornare" ("atualizar") a Igreja, o jovem teólogo alemão Joseph Ratzinger, perito conciliar, deixou suas primeiras impressões, atuando diretamente nas discussões assessorando o bispo de Colônia (Alemanha). Uma de suas lutas contínuas, por sinal, girou em torno da leitura correta dos documentos conciliares. Entendia que o concílio tinha sido desvirtuado em sua interpretação, especialmente sobre as relações entre a igreja e o mundo, o que teria levado a vários problemas.

O papa Bento 16 acena no Vaticano - Max Rossi - 27.out.10/Reuters

Nomeado cardeal em 1977, foi levado pelo papa João Paulo 2º a prefeito na Congregação para a Doutrina da Fé em 1981, onde atuou até 2005, quando chegou à cátedra de Pedro.

Foi um crítico mordaz dos caminhos tomados pelo sujeito contemporâneo, em que "a consciência subjetiva se torna, em definitivo, a única instância ética" —o que denominou de ditadura do relativismo.

Devedor de Santo Agostinho e sua antropologia teológica, com profundo impacto em seu pensamento, entendia a Igreja Católica e o mundo em situação de rivalidade. O livro do santo, "Cidade de Deus", era tomado como um antídoto contra o totalitarismo, que Ratzinger experimentou em sua versão nazista nos anos da escola secundária.

Concordava com a tese de fundo de seu amigo e teólogo Henri de Lubac, que dizia de um "esforço que quer dissolver a Igreja no mundo" a favor de uma "confiança ingênua na natureza e no mundo contra a necessidade da graça e da fé, e contra a ideia de transcendência".

Insistiu assim, particularmente, no diálogo entre fé e razão, defendendo um alargamento da razão, que ultrapassasse a compreensão moderna e que levasse Deus em conta: "uma razão que defronte ao divino é surda e rejeita a religião no âmbito da subcultura, é incapaz de inserir-se em um diálogo das culturas". Sua concepção de modernidade, porém, não se reduziu a sua crítica negativa. Caminhava também em direção ao reconhecimento dos valores modernos que se ancoravam historicamente à tradição cristã.

Criticou constantemente a ideia da possibilidade da construção de uma "nova humanidade" a partir da técnica. O contexto da Segunda Grande Guerra e o conflito das ideologias do progresso o teriam marcado consideravelmente. Debateu com grandes nomes da filosofia atual, como Jürgen Habermas, discutindo os fundamentos morais do Estado liberal, repropondo o direito natural. Recriminou o que denominava "agressividade ideológica secular" e advogou por uma "laicidade justa", que defenderia a liberdade religiosa contra "a imposição de uma ideologia que se apresenta como se fosse a única voz da racionalidade".

Apesar de suas posições políticas e seu movimento em direção aos tradicionalistas, a complexidade de sua biografia intelectual não permite enquadrá-lo fácil e meramente como um agente conservador. Prática recorrente entre alguns de seus detratores, atravessados pela capacidade de Ratzinger em produzir fortes dissonâncias cognitivas num mundo marcado por unanimidades fáceis.

A renúncia em 2013 é, sem dúvida, o momento alto da história do pontificado. A abdicação ao trono papal, que tem suas causas ainda hoje bastante especuladas, levou a uma ruptura no papado moderno. O ato acelerou o tempo e abriu as portas para a chegada de Francisco, que tenta caminhar no espírito reformista. Assim, ambos os papados estão conectados. No entanto, suspeito que quando os historiadores dos próximos séculos retomarem a história da igreja do início do terceiro milênio, o papa teólogo será mais lembrado que o pontífice do fim do mundo.

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