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Giovana Madalosso

Eu precisava chorar outra vez

Depois de oito anos, senti que estava medicada demais e resolvi largar o remédio

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Giovana Madalosso

Escritora, é autora de "Tudo Pode Ser Roubado" e "Suíte Tóquio" e colunista da plataforma de mudanças climáticas Fervura

Sou de um clã tarja-preta. Assim como muitos familiares possuem um mesmo nariz ou uma mesma mancha na perna, eu e os meus parentes dividimos uma mesma inclinação à ansiedade e a tristeza, forte a ponto de ter levado um Madalosso ao suicídio.

Não sou das mais castigadas. Vim quase ilesa até os trinta e sete anos, quando finalmente senti o peso da genética e da vida. Cuidava sozinha do meu bebê em uma cidade em que não tinha família e quase não tinha rede de apoio, enquanto passava por uma separação judicial e fazia frilas de madrugada para conseguir fechar as contas.

A tristeza passou de novo pela minha soleira, não com uma mala mas com a saudável valise de quem vai e vem - oatawa - stock.adobe.com adobe s

Como meu pai havia me alertado, o estresse e a falta de sono abrem a porta para a doença psíquica e logo a soturna patologia passava pela minha soleira, com uma mala grande, de quem veio para ficar. Passei a regar o rosto do meu bebê com lágrimas e a viver paralisada pelo medo, deixando de fazer coisas antes banais, como falar em público ou pegar aviões. E como a vida não para para a fobia passar, logo veio outra rasteira: minha filha tinha uma doença crônica que precisava de tratamento.

Eu não podia cair. Eu não podia me dar ao luxo de cair nem um minuto — o que me fez perceber que, em certas circunstâncias, até a tristeza é um privilégio. Passei a tomar remédio. Graças à serotonina de fábrica, a psicanálise e ao amor, que me erguia todos os dias feito um gancho, aguentei o tranco. E além do tranco: minha menina cresceu e se curou, minha carreira decolou, minha vida amorosa deixou de me sugar e passou a me nutrir.

Depois de oito anos, senti que estava medicada demais. Nem Elton John na TPM conseguia arrancar de mim uma lágrima, e eu precisava chorar — a emoção, como qualquer outra coisa produzida pelo corpo, precisa ser excretada.

Estou tirando o remédio. Não sei se vai dar certo, nem se vai durar muito, mas, até agora, me sinto bem. A tristeza passou de novo pela minha soleira, não com uma mala mas com a saudável valise de quem vai e vem. Está sendo bom me sentir viva outra vez.

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